segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Valiosos presentes do Papa para nós

Francisco:

as situações ‘covid’ e as três solidões da minha vida

Publicamos um trecho do livro "Ritorniamo a sognare" (Voltemos a sonhar) escrito pelo Pontífice com o jornalista Austen Ivereigh, que será publicado em dezembro.

Papa Francisco: Na minha vida tive três situações "Covid": a doença, a Alemanha e Córdoba.

Quando eu tinha 21 anos contraí uma doença muito grave, tive minha primeira experiência de limitação, dor e solidão. Mudaram minhas coordenadas. Durante meses eu não sabia quem eu era, se iria morrer ou viver. Mesmo os médicos não sabiam se eu conseguiria sobreviver. Lembro-me de um dia ter pedido a minha mãe, abraçando-a, para me dizer se eu ia morrer. Eu estava no segundo ano do seminário diocesano em Buenos Aires.

Lembro-me da data: era 13 de agosto de 1957. Foi levado ao hospital, ao constatarem que eu não tinha o tipo de gripe que é tratada com aspirina. Inicialmente tiraram um litro e meio de água do meu pulmão, depois lutei entre a vida e a morte. Em novembro, fiz uma cirurgia para remover o lobo superior direito do meu pulmão. Sei por experiência própria como se sentem os pacientes com coronavírus quando lutam para respirar em um respirador.

Daqueles dias recordo-me de duas enfermeiras em particular. Uma era a enfermeira-chefe, uma irmã dominicana que tinha sido professora em Atenas antes de ser enviada a Buenos Aires. Soube mais tarde que, depois que o médico saiu da sala ao terminar o primeiro exame, ela disse às enfermeiras para dobrar a dose do tratamento que ele havia prescrito – à base de penicilina e estreptomicina - porque sua experiência lhe dizia que eu estava morrendo. A Irmã Cornelia Caraglio salvou minha vida. Graças a seu contato habitual com os doentes, ela sabia mais do que o médico o que os pacientes precisavam, e teve a coragem de usar essa experiência.

Outra enfermeira, Micaela, fez a mesma coisa quando eu sofria com fortes dores. Ela me dava secretamente doses extras de calmantes fora do horário previsto. Lutaram por mim até o fim, até eu melhorar. Ensinaram-me o que significa usar a ciência e o saber para ir além, para responder às necessidades específicas.

Daquela experiência aprendi outra coisa: como é importante evitar consolos superficiais. As pessoas vinham me visitar e me diziam que eu ficaria bem, que nunca mais sentiria toda aquela dor: palavras sem sentido e vazias, ditas com boas intenções, mas nunca chegaram ao meu coração. A pessoa que me tocou mais profundamente, com seu silêncio, foi uma das mulheres que marcaram minha vida: Irmã María Dolores Tortolo, minha professora quando criança, que me preparou para minha Primeira Comunhão. Veio me ver, pegou minha mão, me deu um beijo e ficou em silêncio por um longo tempo. Depois me disse: "Você está imitando Jesus". Não precisava dizer mais nada. Sua presença, seu silêncio, me deram um profundo consolo.

Depois dessa experiência, tomei a decisão de falar o mínimo possível quando visito pessoas doentes. Eu só lhe dou a mão.

[…]

Poderia dizer que o período alemão, em 1986, foi a "Covid do exílio". Foi um exílio voluntário, porque fui para estudar a língua e procurar material para concluir minha tese, mas me sentia como um peixe fora d'água... Costumava fazer algumas caminhadas até o cemitério em Frankfurt e de lá se podia ver os aviões decolando e pousando; eu estava nostálgico por minha terra natal, para voltar. Lembro-me do dia em que a Argentina ganhou a Copa do Mundo. Eu não quis ver o jogo e soube que ganhamos só no dia seguinte, lendo os jornal. Na minha aula de alemão ninguém falou sobre isso, mas quando uma jovem japonesa escreveu "Viva a Argentina" no quadro negro, os outros riram. O professor entrou, disse para apagar e fechou o assunto.

Era a solidão de uma vitória sozinho, porque não tinha ninguém para compartilhá-la; a solidão de não fazer parte de nada, o que faz de você um estranho. Leva para longe de seu lugar e coloca-o em um lugar que você não conhece, e nesse lugar você se dá conta que o que realmente importa é lugar que você deixou.

Às vezes, o desenraizamento pode ser uma cura ou uma transformação radical. Este foi meu terceiro "Covid" foi quando fui enviado para Córdoba de 1990 a 1992. A raiz deste período remonta ao meu modo de comandar, primeiro como provincial e depois como reitor. Eu certamente tinha feito algo de bom, mas às vezes eu era muito severo. Em Córdoba eles me fizeram o favor e tinham razão.

Passei um ano, dez meses e treze dias naquela residência jesuíta. Celebrava a missa, confessava e oferecia direção espiritual, mas nunca saia de casa, exceto quando ia aos correios. Foi uma espécie de quarentena, de isolamento, como aconteceu com muitos de nós nos últimos meses, e me fez bem. Isso me levou a amadurecer ideias: eu escrevia e rezava muito. Até então eu tinha tido uma vida ordenada na Companhia, baseada na minha experiência primeiro como professor dos noviços e depois de governo a partir de 1973, quando fui nomeado provincial, até 1986, quando terminei meu mandato como reitor. Tinha me acomodado com aquele modo de vida. Mas um desenraizamento como aquele, que você é mandado para algum lugar remoto e o colocam como professor substituto, abala tudo. Seus hábitos, seus reflexos comportamentais, suas linhas de referência cristalizadas ao longo do tempo, tudo isso se transformou desapareceu e você deve aprender a viver novamente, a colocar sua existência novamente em ordem.

Daquele período, hoje, me impressionam três coisas. Primeiro, a capacidade de rezar que me foi doada. Em segundo lugar, as tentações que eu sentia. E terceiro - e isto é o mais estranho - que eu tenha lido na época, por acaso, os trinta e sete volumes da "História dos Papas" de Ludwig Pastor. Poderia ter escolhido um romance, algo mais interessante. Pensando onde estou agora, me pergunto por que Deus me inspirou a ler exatamente aquela obra naquele momento. Com aquela vacina, o Senhor me preparou. Uma vez que se conhece aquela história, não há muito que possa surpreendê-lo sobre o que acontece na Cúria Romana e na Igreja de hoje. Me ajudou muito!

A "Covid" de Córdoba foi uma verdadeira purificação. Deu-me mais tolerância, compreensão, capacidade de perdoar. Também me deixou com uma nova empatia para com os fracos e indefesos. E paciência, muita paciência, ou seja, o dom de entender que para as coisas importantes precisa tempo, que a mudança é orgânica, que há limites e que devemos trabalhar dentro deles e ao mesmo tempo manter os olhos no horizonte, como fez Jesus. Aprendi a importância de ver o grande no pequeno, e de ter cuidado com o pequeno nas coisas grandes. Foi um período de crescimento em muitos sentidos, como o brotar novamente após uma poda minuciosa.

Mas devo estar atento, porque quando você cai em certas falhas, certos pecados, e você mesmo corrige, o diabo, como diz Jesus, volta, vê a casa "varrida e adornada" (Lucas 11, 25) e vai chamar sete outros espíritos piores do que ele. O fim daquele homem, disse Jesus, torna-se muito pior do que antes. É com isto que devo me preocupar agora em minha tarefa de governar a Igreja: não cair nos mesmos defeitos de quando eu era superior religioso.

[…] Estes foram meus principais “Covid” pessoais. Aprendi que sofri muito, mas se você se deixar mudar, sairá melhor. Ao contrário, se você levantar barreiras, sairá pior.

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Francisco:

o cristianismo transforma o mundo se for Evangelho

Texto inédito do Papa no livro "Céu na Terra. Amar e servir para transformar o mundo". Prefácio de Martin Junge, Secretário Geral da Federação Luterana Mundial: "Juntos damos testemunho da misericórdia de Deus tanto através da confissão da fé como através do comum serviço ao mundo".

Vatican News - “Quando o cristianismo se enraíza no Evangelho dá o melhor de si à civilização", enquanto "perde o melhor de si quando se corrompe e se identifica com a lógica e as estruturas mundanas". Assim escreveu o Papa em um texto inédito do livro intitulado "Céu na Terra. Amar e servir para transformar o mundo”. O livro será publicado pela Livraria Editora Vaticana na próxima terça-feira, 24 de novembro e faz parte da série ecumênica "Troca de dons" que reúne vários textos já pronunciados por Francisco sobre o tema da fé que se transforma em caridade para com o próximo. O prefácio é de Martin Junge, Secretário Geral da Federação Luterana Mundial.

Força transformadora do cristianismo

No texto inédito, o Papa destaca a "força transformadora do cristianismo" ao longo dos séculos, a partir da consideração do valor de cada pessoa individualmente. Um mundo novo, mais justo e fraterno nasceu como "consequência gratuita de uma fé vivida com simplicidade". O cristianismo - observa - não transformou o mundo antigo com táticas mundanas ou voluntarismos éticos, mas apenas com o poder do Espírito de Jesus Ressuscitado.  Todas as inúmeras obras de caridade, pequenas ou grandes, a corrente de solidariedade que atravessou a história por dois mil anos, tem esta única fonte. A caridade nasce de uma emoção, de uma maravilha, de uma Graça. Desde o início, historicamente, a caridade dos cristãos tornou-se atenção às necessidades das pessoas mais frágeis, as viúvas, os pobres, os escravos, os doentes, os marginalizados... Compaixão, sofrer com os que sofrem, compartilhar. Também se torna uma denúncia de injustiças e um compromisso de combatê-las na medida do possível. Porque cuidar de uma pessoa significa abraçar toda sua condição e ajudá-la a se libertar do que a oprime e nega seus direitos. O primado da Graça - conclui o Papa - não conduz à passividade, pelo contrário, aumenta cem vezes a energia e a sensibilidade às injustiças".

Profunda gratidão

Em seu prefácio, Martin Junge, Secretário Geral da Federação Luterana Mundial, recorda com "profunda gratidão" as palavras do Papa Francisco durante a Comemoração Comum Luterano-Católica da Reforma em Lund na Suécia, em 2016:  “Jesus recorda-nos: ‘Sem Mim, nada podeis fazer’ (15, 5). É Ele que nos sustenta e encoraja a procurar os modos para tornar a unidade uma realidade cada vez mais evidente”. "Naquela liturgia e homilia memorável - escreve Junge - nós católicos e luteranos juntos reafirmamos nosso compromisso por um caminho que leve do conflito à comunhão. Este caminho só é possível por causa de Cristo, que cura todas as nossas feridas e memórias, libertando-nos da dor de experiências passadas, para abraçar o dom da reconciliação que Cristo colocou entre nós". Trata-se de um compromisso - explica o Secretário Geral da Federação Luterana Mundial - que parte "da perspectiva da unidade e não do ponto de vista da divisão" porque "o que nos une é muito mais do que o que nos divide".  E é um compromisso que se torna um serviço comum aos últimos e aos que sofrem: "Juntos damos testemunho da misericórdia de Deus tanto através da confissão da fé como através do serviço comum ao mundo".

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