O conflito divide a Igreja, a crise a purifica
A crise provocada
pela pandemia foi a ocasião para o Papa analisar os desafios que a Igreja
enfrenta e o fez em audiência aos membros da Cúria Romana para os votos de
Natal: "Amados irmãos e irmãs, conservemos uma grande paz e serenidade,
plenamente conscientes de que todos nós, a começar por mim, somos apenas
'servos inúteis'".
Bianca Fraccalvieri – Cidade do Vaticano - Colaboração generosa e apaixonada: o Papa Francisco pediu um presente de Natal aos membros da Cúria Romana, ao recebê-los em audiência esta segunda-feira para as tradicionais felicitações natalinas.
O discurso do
Pontífice foi dedicado a analisar a crise provocada pela pandemia e suas
repercussões na sociedade, mas, sobretudo, na Igreja.
Francisco recordou
o memorável 27 de março passado, quando a Praça estava aparentemente vazia,
mas, na realidade, “estava cheia graças à pertença fraterna que nos acomuna nos
vários cantos da terra”. Esta mesma fraternidade o levou a escrever a encíclica
“Fratelli tutti”, para que este princípio se torne um anseio mundial.
A crise que estamos vivendo é um tempo de graça, afirma o Papa citando alguns episódios narrados na Bíblia: desde crise de Abraão até a “mais eloquente”, que é a de Jesus, e a “crise extrema na cruz”, que abre o caminho da ressurreição.
Ler a crise à luz
do Evangelho
Francisco
reconhece as muitas pessoas na Cúria que dão testemunho com o seu trabalho
humilde, discreto, silencioso, leal, profissional, honesto.
Mas há também
problemas, com a única diferença de que estes “vão parar imediatamente aos
jornais, enquanto os sinais de esperança fazem notícia só depois de muito tempo
e… nem sempre”.
Esta reflexão
sobre a crise, prossegue, alerta para não julgarmos precipitadamente a Igreja
com base nos escândalos de ontem e de hoje. Quem não olha a crise à luz do
Evangelho, afirma o Papa, limita-se a fazer a autópsia de um cadáver.
“Estamos
assustados com a crise não só porque nos esquecemos de a avaliar como o
Evangelho nos convida a fazê-lo, mas também porque olvidamos que o Evangelho é
o primeiro a colocar-nos em crise.”
É preciso reencontrar a coragem e a humildade de dizer em voz alta que o tempo da crise é um tempo do Espírito. E junto do Menino deitado numa manjedoura, bem como na presença do homem crucificado, “só encontramos o lugar certo se nos apresentarmos desarmados, humildes, essenciais”.
A crise é
positiva, o conflito corrói
Francisco faz
também uma distinção entre crise e conflito.
“A crise geralmente
tem um desfecho positivo, enquanto o conflito cria sempre um contraste, uma
competição, um antagonismo aparentemente sem solução, entre sujeitos que se
dividem em amigos a amar e inimigos a combater, com a consequente vitória de
uma das partes.”
A lógica do
conflito sempre busca os “culpados” a estigmatizar e desprezar e os “justos” a
justificar. Isso favorece o crescimento ou a afirmação de certas atitudes
elitistas e de “grupos fechados” que promovem lógicas restritivas e parciais.
“Lida com as categorias
de conflito – direita e esquerda, progressista e tradicionalista –, a Igreja
divide-se, polariza-se, perverte-se e atraiçoa a sua verdadeira natureza: é um
Corpo perenemente em crise.”
Um Corpo em
conflito produz vencedores e vencidos, temor, rigidez, falta de sinodalidade.
Já a novidade introduzida pela crise desejada pelo Espírito nunca é uma
novidade em contraposição ao antigo, mas uma novidade que germina do antigo e o
torna sempre fecundo.
O Papa exemplifica
este conceito com uma frase de Jesus: "Se o grão de trigo, lançado à
terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto". "Só
morrendo para uma certa mentalidade é que conseguiremos também abrir espaço à
novidade que o Espírito suscita constantemente no coração da Igreja."
Crise exige
atualização
Francisco recorda
que a "Igreja é sempre um vaso de barro, precioso pelo que contém e não
pelo que às vezes mostra de si mesma".
"Temos de
esforçar-nos por que a nossa fragilidade não se torne obstáculo ao anúncio do
Evangelho, mas lugar onde se manifeste o grande amor de Deus."
A Tradição
custodia a verdade e a graça, mas a Igreja tem que lidar com os vários aspectos
da verdade que pouco a pouco vamos compreendendo.
“Nenhuma
modalidade histórica de viver o Evangelho esgota a sua compreensão. Se nos
deixarmos guiar pelo Espírito Santo, iremos dia após dia aproximando-nos cada
vez mais da 'Verdade completa'.”
Deixar o conflito
de lado, abraçar a crise e colocar-se a caminho
Como comportar-nos
na crise? Questiona-se por fim o Papa. Antes de mais nada, aceitá-la como um
tempo de graça que nos foi dado para compreender a vontade de Deus sobre cada
um de nós e a Igreja inteira. É preciso entrar na lógica, aparentemente
contraditória, de que, "quando sou fraco, então é que sou forte".
Ponto fundamental
é não interromper o diálogo com Deus, nunca se cansar de rezar. "Não
conhecemos outra solução para os problemas que estamos a viver, senão a de
rezar mais e, ao mesmo tempo, fazer tudo o que nos for possível com mais
confiança."
Eis então a exortação
final do Papa:
“Amados irmãos e
irmãs, conservemos uma grande paz e serenidade, plenamente conscientes de que
todos nós, a começar por mim, somos apenas «servos inúteis», com quem usou de
misericórdia o Senhor.”
A crise é
movimento, faz parte do caminho. Ao contrário, o conflito é permanecer no
labirinto, perdidos em murmurações e maledicências.
Francisco pede que
cada um de nós, independentemente do lugar que ocupa na Igreja, interrogue-se
se quer seguir Jesus na crise ou defender-se Dele no conflito.
O Papa conclui
pedindo um presente de Natal: a colaboração generosa e apaixonada da Cúria no
anúncio da Boa Nova, sobretudo aos pobres. E citou Dom Hélder Câmara e sua
famosa frase: "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando
pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”.
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