A grandeza do homem está naquilo que lhe resta precisamente quando tudo o que lhe dava algum brilho exterior se apaga. E o que lhe resta? Os seus recursos interiores e nada mais. ( José Tolentino Mendonça - Libertar o Tempo, p.29)
Os tempos difíceis não devem ser tempos para as lamentações, a nostalgia ou o desânimo. Não é hora da resignação, da passividade ou da omissão. A ideia de Jesus é outra: em tempos difíceis “tereis ocasião de dar testemunho”. É precisamente agora que precisamos reavivar entre nós o chamado a ser testemunhas humildes, mas convincentes, de Jesus, de sua mensagem e de seu projeto. (Pagola, Lucas, p. 326-327)
♦ Chegamos ao final do ano litúrgico de 2025. No último domingo de novembro voltaremos a percorrer as sendas do advento que nos levarão ao presépio do Menino das Palhas e à contemplação do maravilhoso mistério da encarnação do Verbo de Deus. As leituras deste domingo falam de perseguições, de tempos difíceis, de turbulências. Estamos sendo convidados a refletir sobre o final dos tempos e as anunciadas tribulações descritas num estilo apocalíptico. Ficamos cheios de consolo, no entanto, quando ouvimos dizer que, em momentos de desafio e de perseguição por causa de nossas convicções, o Senhor há de nos dar palavras acertadas. Não perderemos um só fio de cabelo. Somos convidados a perseverar e ter paciência.
♦ Não podemos aqui elencar todas as transformações, mudanças, mutações e turbulências que estão a nos afetar de modo especial nas últimas décadas. Os que fizemos boa parte do caminho temos a impressão que as coisas se aceleraram. Tudo muda e se transforma loucamente em termos de tecnologia, na busca da identidade do ser homem e ser mulher, na educação dos filhos, na concepção dos valores, no jeito de educar, no casamento. Nós, cristãos, ficamos preocupados com a transmissão da fé às novas gerações e com a distância que muitos foram tomando da fé cristã e, ao mesmo tempo com desvios morais mais ou menos graves, tomadas de posição de ultradireita ou de ultraesquerda. Parecem terremotos como aqueles descritos nas páginas dos Evangelhos agora proclamados.
♦ Que fazer? Ter espírito crítico. Cultivar o hábito de discernir. Nada de embarcar em canoas que possam estar furadas. Não alimentar nostalgia do passado que pôde também ter tido deficiências, nem querer começar tudo de zero. Em todos os campos. Não andar atrás da primeira novidade que aparece. Nada de ingenuidade. Discernir. Tentar descobrir aquilo que constrói o ser humano, o que respeita sua dignidade, o que contribui para diminuir desigualdades, o que minora as dores, o que nos permite saborear o fato de viver, o que nos torna santos.
♦ Focando mais de perto a questão da vivência cristã parece importante fixarmo-nos no essencial, como em tudo aliás. O essencial não são tradições, costumes e visões que nos apequenam. Sair da superfície e chegar ao fundo. Muitos, em nossos dias, vivendo e participando das turbulências se dizem perdidos e com vontade de tudo abandonar. Então:
>> Nada de uma religião cerebral, busca de um Deus frio. Antes de mais nada prestar atenção nessa legítima saudade de Deus que experimentamos. Essa sede de plenitude. Essa vontade de achegarmo-nos a um Tu que nos ama, nos atrai, solicita uma resposta pessoal. Buscar áreas verdes. Desvencilharmo-nos de nós mesmos. Karl Ranher advertia, em meados do século passado, que o cristão do amanhã seria um místico ou nada.
>> Rever a maneira como rezamos. O movimento dos lábios precisa acompanhar os reclamos de um ser pobre que se lança no Mistério. Positivamente precisamos nos tornar amigos de Deus, para além das prescrições e observância dos ritos.
>> Procurar reencontrar nosso eu mais profundo, nosso interior, a plataforma interior a partir da qual se constrói a pessoa. Milan Kundera: “Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo”. Tolentino fala da necessidade de resgatar nossa relação com o tempo. Precisamos reaprender o aqui e agora da presença.
>> Concentrar-se no essencial. Cada geração cristã tem seus próprios problemas, dificuldades e buscas. Não devemos perder a calma, mas assumir nossa responsabilidade. Não se pede nada que esteja acima de nossas forças. O essencial continua sendo um imenso senso de solidariedade e bondade e um decidido empenho de ouvir a voz do Senhor. Nos dias de claridade e nas noites escuras sem estrelas.
>> O trecho do Evangelho hoje proclamado fala de perseverança e paciência. Os pais precisam paciência para entender as opções que filhos parecem assumir, os sacerdotes necessitam descobrir um meio de fazer com seus fiéis cresçam de fato e não enveredem pela trilha do intimismo e das emoções ditas místicas; os governantes haverão de paciente e perseverantemente descobrir meios para que não falte trabalho, especialmente para os jovens. Dar tempo ao tempo. Apressado come cru. Perseverança e paciência.
>> Ser capaz de acolher as surpresas do Senhor. Vivíamos a vida de um jeito, numa Igreja diferente, nos tempos das coisas antigas. Deus se nos manifestava numa certa estabilidade, talvez meio parada. Hoje ele nos surpreende na globalização, na necessidade acolher os refugiados, no sermos uma Igreja em saída, num mundo que não esperávamos viver.
>> Pode-se dizer que o antídoto da crise civilizatória que vivemos é o empenho de humanizar os humanos que, aos poucos, foram perdendo sua essência: a alegria de viver, a redescoberta da confiança, o cuidado de escutar e enxergar. Precisamos, novamente, fazer a experiência do espanto diante das coisas simples: um jantar em família, atenção para um colega de trabalho revoltado com a vida, da alegria um cafezinho tomado com um pessoa que mal conhecemos no instante.
>> Cristãos que somos necessitamos urgentemente de ler e reler, meditar e viver o Sermão da Montanha de Mateus (5-7). Revestirmo-nos dos sentimentos que animaram o Senhor Jesus.
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Texto seleto
Os tempos estão mudando. E os tempos de mudança são inspiradores, não o esqueçamos. O inverno conspira para que surjam inesperadas flores. “O que está sendo dito para nós?” é a pergunta necessária. O que esta avalanche cultural nos revela? De fato, a grande crise, a mais aguda, não é sequer os acontecimentos, decisões e deserções que nos trouxeram aqui. Dia a dia sobrepõe-se um problema maior: a crise da interpretação. Isto é, a falta de um saber partilhado sobre o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um enquanto indivíduo e para todos enquanto comunidade, os modos possíveis de nos reinventarmos (Tolentino, A Mística do Instante, p. 123).
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Oração
Confiarei…
ainda que me perca em teus caminhos,
ainda que não encontre meu destino,
confiarei…
Confiarei…
ainda que não entenda tuas palavras,
ainda que teu olhar me queime,
confiarei…
Eu te seguirei,
duvidando e andando ao mesmo tempo
e te amarei,
tremendo e amando ao mesmo tempo.
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FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.
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