o
amor aos pobres como coração do Evangelho
Dom João Santos
Cardoso - Arcebispo de Natal (RN)
A Exortação
Apostólica Dilexi te, do Papa Leão XIV (4 de outubro de 2025), constitui
um dos primeiros atos magisteriais de seu pontificado e manifesta uma clara
linha de continuidade com o Papa Francisco, de quem o novo Pontífice herdou o
projeto inicial do texto. Essa continuidade se expressa não apenas no título —
que dialoga diretamente com a encíclica Dilexit nos, sobre o amor humano e
divino do Sagrado Coração de Jesus —, mas sobretudo na ênfase dada à dimensão
evangélica do amor preferencial pelos pobres como caminho de santificação
pessoal e renovação eclesial.
O documento
parte de fontes bíblicas como fundamento do compromisso cristão com a promoção
humana e o cuidado dos pobres. Desde a frase inicial — que abre e dá título ao
texto, «Eu te amei» (Ap 3,9), dirigida a uma comunidade cristã sem prestígio
nem recursos, exposta à violência e ao desprezo —, recorda-se que o amor divino
se manifesta, antes de tudo, na atenção aos pequenos e esquecidos.
A partir da
revelação feita a Moisés — “Eu vi a aflição do meu povo” (Ex 3,7-10) —, o Papa
mostra que o amor de Deus em relação aos pobres se traduz em escuta, compaixão
e libertação. A pobreza, portanto, não é um acaso nem um simples dado social,
mas um lugar teológico onde Deus se revela e fala à humanidade: “o contato com
quem não tem poder nem grandeza é um modo fundamental de encontro com o Senhor
da história. Nos pobres, Ele ainda tem algo a dizer-nos” (n. 5). Cristo, o
Messias pobre, encarna plenamente essa opção divina: “sendo rico, fez-se pobre
por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9). Assim, o amor aos
pobres deixa de ser mera beneficência para tornar-se expressão concreta da fé
no Deus que se fez pobre e próximo dos últimos.
Leão XIV
demonstra que a atenção e o cuidado com os pobres não derivam de ideologias nem
de modismos sociais, mas têm natureza teologal, enraizada no próprio mistério
da fé cristã. Para o Papa, essa atitude brota do Evangelho e da vida de Jesus,
que se fez pobre e caminhou entre os marginalizados, e foi vivida com
fidelidade pelas primeiras comunidades cristãs, que partilhavam os bens “de
modo que entre eles não havia necessitados” (At 4,34). Assim, o amor aos pobres
não é uma opção circunstancial, mas uma dimensão essencial da fé e da comunhão
eclesial. Por isso, Leão XIV mostra que a atenção aos pobres não é uma inovação
contemporânea, mas uma constante da vida e da missão da Igreja.
Recorrendo
amplamente à Tradição patrística e monástica, o Papa evoca figuras como São
Lourenço, Santo Agostinho, São João Crisóstomo e São Basílio Magno, para
evidenciar que, desde os primeiros séculos, o cuidado dos pobres foi
compreendido como ato de fé e expressão do amor a Cristo, e não como simples
gesto moral ou social. A vida monástica, por exemplo, aparece como “escola de
caridade”, e os mosteiros, como “lugares de refúgio e partilha”. Leão XIV
recorda, assim, que a solidariedade evangélica é elemento constitutivo da
identidade cristã e não fruto de circunstâncias históricas.
O texto também
busca unir os últimos três pontificados — João Paulo II, Bento XVI e Francisco
— num mesmo horizonte de amor social e espiritual, mostrando que o cuidado dos
pobres é expressão da única fé da Igreja. Leão XIV reforça a dimensão
transcendental da caridade: é preciso “estabelecer com Deus o Reino de justiça”
antes de pretender construir estruturas sociais justas. A ação caritativa,
portanto, não substitui o Evangelho, mas brota dele e o torna visível na
história.
Há também uma
importante menção à expressão “Igreja dos pobres”, retomando o Cardeal Lercaro
no Concílio Vaticano II e o Papa Francisco (n. 84). A opção pelos pobres
aparece, então, como consequência do amor de Cristo, que vê no pobre uma
categoria teológica: amar o pobre é amar o próprio Senhor (cf. Mt 25,40).
Por fim, Leão
XIV propõe uma Igreja que “saiba apenas amar”, não como idealismo ingênuo, mas
como resposta teológica a tempos marcados por ódio, polarizações e
fundamentalismos. O amor, enraizado em Cristo, é a única força capaz de
reconciliar fé e história, oração e compromisso, transcendência e transformação
social. Assim, Dilexi te é, ao mesmo tempo, continuidade e novidade:
continuidade do magistério de Francisco e novidade do estilo espiritual de Leão
XIV, que imprime ao texto um tom de unidade e reconciliação para uma Igreja
chamada a redescobrir no amor aos pobres o núcleo do Evangelho.
________________________________________________ Fonte: cnbb.org.br Imagem: vaticannews.va
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