A Palavra de Deus precede e excede as Escrituras
Motivadas pela
memória de São Jerônimo (30/09), as comunidades católicas acabam de celebrar o
mês da Bíblia (as comunidades evangélicas celebrarão o dia da Bíblia em
dezembro). Jerônimo nasceu em 347, na atual Croácia, e dedicou sua vida ao
estudo das Sagradas Escrituras. É dele a tradução dos textos do hebraico e do
grego para o latim popular. Ele é o patrono dos estudiosos bíblicos,
arqueólogos, bibliotecários e tradutores.
Nos primeiros
séculos do cristianismo, as comunidades cristãs se guiavam basicamente pela
Palavra de Deus. A Bíblia e Tradição andavam de mãos dadas. São Jerônimo
insistia a um amigo: “Lê com frequência e aprende o melhor que possas. Que o
sono te encontre com o livro nas mãos e a página sagrada acolha o teu rosto
vencido pelo sono”. Ele não cansava de dizer que ignorar as escrituras seria o
mesmo que ignorar Jesus Cristo.
No século XIII,
o movimento dos Cátaros começou a interpretar alguns livros da Bíblia de modo
polêmico, o que levou o Concílio de Toulouse (1229) a proibir o uso de
traduções vernáculas. Jonh Wyclife (1320-1384) afirmava que somente a tradução
inglesa da Bíblia era regra de fé. O movimento dos Valdenses interpretava as
escrituras numa perspectiva subjetiva. E o movimento luterano estabeleceu a
autoridade absoluta a Bíblia.
O Concílio de
Trento reagiu confirmando a autenticidade da tradução católica da Bíblia,
rejeitando a livre interpretação, estimulando os estudos bíblicos e incluindo
novos livros no cânon católico (Tobias, Judite, Sabedoria, Baruc, Eclesiástico
e Macabeus). Mas declarou também que somente os bispos e inquisidores poderiam
autorizar a leitura da Bíblia nas línguas modernas. E a Bíblia perdeu sua
influência salutar sobre a vida cristã.
Livre das
tensões com o protestantismo, com o jansenismo e com algumas heresias, o século
XX trouxe significativas mudanças em relação ao uso da Bíblia pelos católicos.
Pio X (1903-1914) sugere o uso constante da Sagrada Escritura na liturgia.
Bento XV, em 1920, recomenda aos fiéis a leitura diária dos evangelhos. Em
1940, Pio XII recomenda a difusão da Bíblia entre os fiéis, nas línguas
vernáculas autorizadas.
Graças a Deus,
há meio século atrás, o Concílio Vaticano II (1962-1965) ‘democratizou’ o
acesso à Palavra de Deus aos fiéis católicos pedindo que os pastores facilitem
seu acesso a todo o povo de Deus e se coloquem a serviço dela. Nela e por ela,
o próprio Deus estabelece um diálogo vivo conosco e nos constitui como povo da
Aliança, peregrino do seu Reino. Assim, a Palavra de Deus é o fundamento, a
base e o coração da espiritualidade.
É importante
lembrar que a Bíblia não se identifica simplesmente com a Palavra de Deus. A
Palavra de Deus desborda o livro, embora nele se expresse de modo importante.
Temos também a tradição viva da Igreja e os sinais dos tempos. A Palavra de
Deus precede e excede as Sagradas Escrituras. Nenhum discípulo missionário pode
esquecer disso.
Cabe-nos crescer
na familiaridade com a Palavra de Deus, entrar nela, identificar-nos com ela,
como o fizeram Jesus e Maria de Nazaré: “Faça-se em mim segundo a tua Palavra”,
diz Maria (Lc 1,38). “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e levar
a termo a sua obra” (Jo 4,34), declara Jesus. É daqui que brota nossa
missão.
Dom Itacir Brassiani - Bispo de Santa Cruz do Sul (RS)
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