Falar a voz do bem
É preciso, ecoar de onde nascem os
sentimentos, palavras que possam devolver a esperança, restaurar os
relacionamentos, produzir entendimentos, especialmente quando há grande
urgência em refazer escolhas nos âmbitos pessoal, familiar, político, religioso e econômico também. Refazer escolhas norteadas pela voz do coração emoldurada pela claridade da razão, o que nos impede de perder o rumo, o
sentido do viver – para não cair no ardil existencial de desistir do
dom da vida. Ou, ainda, viver o dom da vida desconsiderando toda grandeza que o
viver carrega em si. Deixar falar a voz do coração, assim nos lembra a poesia
da canção, indica ser oportuno e urgente priorizar “a voz do bem” ante os
cenários e a avalanche de “falas” facilitados, sobretudo, pela velocidade das redes sociais.
Dom Walmor |
O bem traz intrinsecamente no seu âmago a
verdade que liberta e corrige, denuncia e anuncia, com propriedades que
passam longe dos destemperos patológicos
multiplicados por interesses de todo o tipo, fazendo do falar uma ancoragem perigosa e perversa que jamais conseguirá atingir a mais
importante propriedade da palavra, a geração de entendimentos, próprio da
demanda de tecer relacionamentos que promovam a paz.
A avalanche de crises, em curso no conjunto
da grande mudança civilizatória
envolvendo a humanidade neste momento, aponta grandes e complexas
transformações impedindo a voz do bem. É assustadora a dimensão de hostilidade
dos discursos, não só político, mas também
o religioso, promotor de lutas fratricidas e demolidoras de reputações, com
grosserias e manipulações lesivas, produzindo na vivência religiosa tudo o que se pode imaginar,
menos a promoção da voz do bem. De
modo semelhante se cultiva uma odiosidade na política e na religião,
desvirtuando-a dos pilares de suma importância
na construção da história e, particularmente, neste momento de transição
civilizatória, com reconstruções a se operar, recuperação
de perdas em tempo e em vidas, consideradas as suas etapas todas.
Não deixar falar a voz do coração,
componente intrínseco do viver humano, está empurrando a sociedade ao
precipício do ódio. Deixar falar a voz do coração é um chamado que perdeu o
rumo e precisa ser recuperado com o exercício primeiro de deixar falar a voz do
bem. Deixar falar a voz do bem é compromisso e garantia da possibilidade de se
produzir uma profecia indispensável na construção de uma sociedade justa e
solidária. Diminuta, tem se configurado a
possibilidade de avanços
civilizatórios, por causa do ódio que se propaga e dissemina a desestabilização
das instituições, para tomar seu lugar com ilusória proposta. Caminho sem
factibilidade enquanto resposta às demandas e urgências para qualificadas
correções de rumos, claridade nas escolhas e balizamentos humanísticos que impulsionem, urgentemente, a humanidade à condição de, ao
menos, administrar melhor o conjunto de crises que a destroem. E,
assim, desenhar por este humilde passo a passo um novo tempo, usufruindo de
condições propícias advindas das conquistas tecnológicas e avanços científicos. Compreende-se, pois, as multiplicadas inadequações no mundo da
política e no interno da vivência religiosa, agravadas por misturas, ora inconsequentes e inconscientes, ora perversas e
calculadas.
O momento atual, caracterizado por crises
sobre os ombros arqueados da humanidade, precisa ser vivido e entendido com uma lucidez que permita aprendizagem e possa exercitar a
resiliência fazendo nascer
modos novos nos modelos de sociedade, pautada pelo falar a voz do bem, longe de
ataques figadais e demolidores, nos trilhos da fraternidade universal e da
solidariedade. Uma outra lógica de funcionamento, com força de superação de divisões
odiosas, dando lugar à
nobreza da igualdade fraterna, superando desigualdades sociais e raciais, pondo
fim aos cenários vergonhosos e
inaceitáveis de discriminações, violências e homicídios.
Deixar falar a voz do bem, sem dissimulação ou conivências,
dizendo a verdade, é caminho fecundo na produção de entendimentos lúcidos que possam fazer ver o despropósito produzido por ódios políticos e religiosos. A voz do bem é remédio terapêutico para
recuperar a voz do coração, desmontando manipulações ilegítimas para articular
em riqueza as diferenças, iluminando escolhas inadiáveis para produzir entendimentos indispensáveis de processos e mecanismos que libertem
a sociedade dos artífices do mal, em razão de conveniências,
de submissão ou de lucros a
todo preço.
O Papa Francisco, na sua Carta Encíclica Fratelli Tutti, ilustra com a figura de São
Francisco a articulação amorosa e
qualificada entre o falar a voz do coração e o falar a voz do bem. Na vida de Francisco de Assis, narra o Papa, está o episódio da sua visita ao Sultão do Egito, Malik-al-Kamil, empreendendo um grande
esforço, superando dificuldades de distância, cultura, língua e condições financeiras, movido por um coração sem fronteiras, capaz de superar obstáculos, numa viagem que mostra a grandeza do
amor, uma voz do coração
que fala a voz do bem. Foi ao Sultão, movido pelos ensinamentos que compartilhava com seus discípulos: sem fazer litígios, contendas, mas submisso a toda criatura humana por amor a Deus. É dele a canção que cantada amalgama a voz do coração e a voz do bem. Uma súplica: Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz; onde houver ódio que eu leve o amor, onde houver discórdia
que eu leve a união, onde houver dúvidas que eu leve a fé; onde houver erro que
eu leve a verdade; onde houver ofensa que eu leve o perdão; onde houver
desespero que eu leve a esperança, onde houver tristeza, que eu leve alegria,
onde houver trevas, que eu leve a luz. Deixar falar a
voz do bem.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo - Arcebispo
de Belo Horizonte (MG)
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