O mês de outubro, na Igreja Católica, é dedicado às Missões,
pois se inicia com a celebração da padroeira das Missões, Santa Terezinha do
Menino Jesus. No terceiro domingo, faz-se a coleta que financia as iniciativas
missionárias da Igreja em todo o mundo.
No Brasil, esse mês se reveste de uma importância singular,
pois nele são celebrados santos amados pela devoção popular e de muita
significação para o nosso povo, além de Santa Terezinha: São Francisco de
Assis, conhecido como santo da ecologia e da fraternidade universal; São
Benedito, o Negro, padroeiro das cozinheiras e cozinheiros, e Nossa Senhora do
Rosário, entre outros.
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Pe. Paulo Adolfo |
No entanto, nenhuma devoção é mais genuinamente brasileira que
a da imagem da virgem enegrecida pelas águas do rio Paraíba do Sul, encontrada
por pescadores no dia 12 de outubro de 1717. Dos meses de julho a outubro,
pelos caminhos do sul de Minas, encontramos uma multidão caminhando a pé ruma à
casa da Mãe Aparecida. São caminhadas de fé. São caminhadas duras,
cansativas e de muita alegria, assim como é a fé. A verdadeira fé. Em seu
santuário nacional, deságua uma multidão de fiéis. Juntando-se aos que vêm a
pé, há outros romeiros devotos que chegam de carro, de ônibus, motocicletas, a
cavalo, de motos, bicicletas, carros de bois…
As caminhadas de fé tornaram-se também uma rota oficial do
turismo religioso, que passa por diversos municípios da arquidiocese de Pouso
Alegre, o conhecido “Caminho da Fé”. Embora o culto à Virgem Aparecida abarque
uma grande diversidade de classes sociais e de motivações pessoais, são
notadamente os mais pobres os que em maior número se dirigem ao santuário. E a
gratidão é, das motivações, a mais citada.
Daí a pergunta: por que Nossa Senhora Aparecida atrai tanto as
massas empobrecidas? Por que essa devoção toca mais os corações de mulheres e
homens sofredores, historicamente explorados, embora nem sempre tenham
consciência disso?
Temos aqui um elemento socioeconômico fundamental que não pode
ser ignorado. De fato, uma grande parcela do povo brasileiro é de miseráveis
que vivem abaixo da linha de pobreza, e sua maior parte é constituída de pobres
e de remediados. Ou seja, cerca de oitenta por cento da população, que não
usufruem as tão propaladas grandes riquezas naturais da Terra de Santa Cruz,
nem as riquezas produzidas pelo trabalho duro. Quem se beneficia de
oitenta por cento das riquezas do país são menos de vinte por cento da
população, os verdadeiramente ricos. A grande maioria dos empobrecidos não
possui recursos financeiros para cuidarem de suas necessidades básicas e
dependem das Políticas Públicas do estado. Essas mulheres e homens empobrecidos
também não têm condições econômicas para visitar Maria branca e até de olhos
azuis em santuários europeus. Na falta de recursos para pagarem por suas
necessidades básicas e do pouco retorno que o estado brasileiro dá dos impostos
que cobra, praticamente todo dessa população sofrida, resta-lhe recorrer aos
santos, sobretudo à querida imagem negra de Nossa Senhora Aparecida. E essa
imagem é de Maria, mulher e mãe. Mulher e mãe não falham! Por isso o povo tem
por ela enorme gratidão!
Mas há também uma identificação histórica e cultural do povo
brasileiro com a imagem de Aparecida. Aparecida é uma imagem pobre e
negra, como a maioria da população do Brasil. Representando a Imaculada
Conceição, é uma imagem pequena e foi encontrada escurecida pela lama do rio
Paraíba do Sul – SP quebrada em dois pedaços. Uma imagem desprezada, porque
quebrada e, por isso, jogada fora, no rio Paraíba do Sul. No fundo desse rio,
passou muito tempo, por isso ficou de cor negra. Torna-se ainda mais
desprezível aos olhos de uma elite social branca e europeia. Uma imagem
quebrada, escurecida e pequena, mas representando Maria sem pecado desde seu
nascimento. É uma representação verdadeira do povo brasileiro. Esse povo
forjado na opressão, na violência e na espoliação, sempre consequências da
busca de lucro desenfreado por um sistema financeiro que não olha para a pessoa
nem para a natureza. Mas um povo que se reinventa, cria um caldo cultural
riquíssimo e sobrevive em defesa de sua dignidade.
A história do Brasil compreende dois grandes genocídios,
talvez os maiores da história humana: o primeiro, dos povos indígenas, de cor
vermelha, verdadeiros donos da terra. O segundo, dos povos vindos de África,
pessoas negras escravizadas. Nosso chão brasileiro, chão fértil e acolhedor com
calor de útero, “que, em se plantando, tudo dá” (Pero Vaz de Caminha), é um
chão encharcado do sangue, suor e lágrimas desses povos, muitos povos. E nesse
chão, no século em que mais e mais pessoas escravizadas – mulheres, homens
adultos, mas também adolescentes e crianças – eram contrabandeadas como se
fossem mercadoria, surge uma imagem negra, quebrada, pequena e pobre, como
representação da Mãe de Jesus. Mais que isso, os trabalhadores que a encontram
enquanto exercem o ofício da pescaria, estavam a mando do governador da
província de São Paulo. Segundo o jornalista e historiador Laurentino Gomes, em
sua obra Escravidão, provavelmente seriam eles escravizados ou negros forros
(GOMES, Laurentino, 2021, p. 99).
Portanto, a devoção a Nossa Senhora, pretinha, de Aparecida, exige de nós, mais que uma romaria, mais que uma caminhada geográfica, pelas estradas de poeira ou asfalto até o santuário nacional. Exige das brasileiras e dos brasileiros uma caminhada espiritual. Um longo percurso de fé ao interior de nós mesmos e de nossas histórias. Uma caminhada de redescoberta e de reconciliação com nossas origens. Uma caminhada de reconhecimento da responsabilidade por termos causado a perda de vidas e o sofrimento a tanta gente. Uma caminhada de perdão àqueles e àquelas, que, por ganância, historicamente nos tiram a vida. Fará muito mais sentido nossa visita ao santuário da Mãe Pretinha quando levantarmos nosso brado em favor dos nossos povos, sobretudo os povos originários: quilombolas, indígenas, ribeirinhos, agricultores sem-terra. O povo da cor da Mainha.
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.................................................................................................................................................... Fonte: arquidiocesepa.org.br
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