domingo, 5 de dezembro de 2021

Reflita com Dom José Francisco:

Para entender o Natal

PARA ENTENDER O NATAL precisamos caminhar na direção de um acontecimento único na História humana: a pregação de Paulo e Lucas, em Roma. E, sobretudo, a vivência de Lucas dos acontecimentos que ele quis, depois, narrar.

Dom José Francisco

Pois tão logo Lucas voltou de Roma, ele constatou que os que haviam seguido o Senhor pelos caminhos da Galileia e da Judeia estavam envelhecendo e que alguns já haviam partido ao encontro Dele. Aquela constatação era constrangedora! Em breve, muitas das primeiras testemunhas não estariam mais entre os irmãos: como as novas gerações ficariam sabendo de tudo do que aconteceu? Era urgente recolher as lembranças dos que haviam conhecido Jesus. Entre as comunidades, alguns haviam anotado as palavras dos apóstolos e ainda circulavam coletâneas das palavras que Jesus havia pronunciado, dos feitos e fatos, e dos lúgubres relatos que narravam o que havia acontecido nas horas finais.

Lucas era metódico. Jamais partia do nada.

Em Roma, já havia encontrado Marcos, próximo a Pedro, que também havia empreendido o mesmo trabalho. Sem descanso, ele coletava os novos fragmentos, compilava, copiava, recopiava. Como se espalhara a notícia do que ele fazia, foram chegando outras testemunhas, trazendo palavras que haviam ouvido deste ou daquele sujeito: uma narrativa, uma historieta, uma piada… Pouco a pouco, Lucas via renascer sob seus olhos a figura exuberante do Profeta da Galileia: não mais o Senhor, como Paulo o havia apresentado a ele, mas um homem, extremamente humano, que havia percorrido as areias da Galileia, se debruçado sobre as dores de homens e mulheres, sem nome e nenhum sobrenome, que havia chamado a si os menores, os doentes, as crianças.

Quando Lucas fechava os olhos, ele via Jesus. Ouvia sua voz. Sentia o calor do sol, o frescor da tarde, o cair da noite, o fogo que se acendia. Era a hora em que o Mestre tomava a palavra, só com eles, e cada gesto adquiria sentido. Uma coisa o deixava maravilhado: seu Mestre contava histórias da vida cotidiana, dos vinhateiros, de um semeador, de um pastor, da mulher que perde a moeda e varre a casa inteira, de outra, que pede justiça a um juiz iníquo…

Recapitulando todas as informações, Lucas alcançou a derradeira e fundamental certeza: o Reino de Deus não estava apenas nos Céus, mas já, aqui, na Terra. Paulo havia pintado o grandioso panorama da Salvação, do início do mundo às extremidades da Terra. E, ali, Lucas via o Reino se desenhar nas coisas mais insignificantes: o céu que entardecia vermelho no horizonte, os pássaros do céu nas árvores do jardim, as crianças brincando nas praças. Não havia aí a grandiosidade do que Paulo anunciava. Mas tudo era grandioso, de uma extensão própria, primaveril, primordial: era como estar de volta ao primeiro dia da Criação.

Rolos de papiro amontoados a volta, as vezes alguma testemunha lembrava de mais um fato, uma refeição na casa de um fariseu (teria sido em Betânia ou em Jerusalém?). Paulo, seu mestre, não se perguntava sobre esses detalhes humanos tão caros a Lucas: para ele, em Jesus se cumpria toda Escritura, toda Lei, e sua Palavra era anunciada até os confins da Terra.

Por fim, certa manhã, Lucas teve certeza de que tudo estava pronto dentro dele. Sabia o que ia escrever. Tendo em mente todos os homens e mulheres da Terra, ele começou a escrever: “Caro Teófilo!”, que quer dizer “amigo de Deus”. Todos os “amigos de Deus” estavam ali, inclusive, você e eu.

É assim, e a partir daí, que a narrativa do Natal me vem em mente, assim como veio à mente de Lucas, tão historiador quanto poeta, com tudo o que veio antes e depois.

Lucas é minucioso, cauteloso, inteligente, perspicaz. Lucas bebe das palavras e das intuições de Paulo. Mas vai além: ele se debruça no temor de Zacarias e no véu da fé de Isabel. Ele vê o menino João dando os primeiros passos. Ele sai atrás de Maria nas estradas das montanhas que a levaram à casa da prima, praticamente, ele “ouve” o Magnificat. Ele “segue” José e sobe de Nazaré à Belém, na Judeia, e ele “vê” os pastores chegando, na noite fria, e o balido das ovelhas pequenas que se confunde com o vagido do Recém-nascido.

“Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado num cocho de animais”. Que diferença desse Lucas e do Lucas que seguira Paulo. Aqui, os sinais só servem para quem deseja encontrá-los.

Nem Lucas nem Paulo estiveram com Jesus. Mas, para quê, não é? Eu e você também não estivemos. E, no entanto, estamos aqui, hoje, à espera de que Ele volte. Judas, Pilatos, Herodes estiveram com Ele, cara a cara. E adiantou em alguma revelação?

Queremos que Ele se revele a nós. Com urgência. Mas aguardamos o Seu tempo.

Essa espera passa pelo Natal de 2021, vinte e um séculos depois: quem diria! Mas não é uma espera vazia. É uma espera plena, adulta, calma, silenciosa. Dela depende o que vivemos na vida e o que faremos do que vivemos na vida.

E isso não é pouco!

Desejo, irmãos e irmãs, que esse Natal os encontre à espera de todas as certezas, animados com todas as certezas que nos levam a esperar.

E que o novo seja novo, e não apenas na palavra.

Deixo a todas e a todos a minha bênção com os votos de um santo Natal!

Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
..............................................................................................................................................................
                                                                                                                                 Fonte: arqnit.org

Nenhum comentário:

Postar um comentário