quinta-feira, 4 de junho de 2020

Refletindo com Dom José Francisco

Fornalha ardente de Caridade

A Ladainha do Sagrado Coração de Jesus exala o odor de uma beleza que extrapola qualquer beleza plástica: trata-se de uma beleza mística. Coração de Jesus, de majestade infinita, Coração de Jesus, tabernáculo do Altíssimo, fornalha ardente de caridade, receptáculo de justiça e de amor, abismo de todas as virtudes, desejado das colinas eternas…
Dom José Francisco Rezende Dias
Em 1673, Santa Margarida Maria de Alacoque, recebeu várias “visitas” de Cristo. Em uma delas, ela recebeu as maravilhosas 12 promessas do Sagrado Coração de Jesus. Quantas pessoas foram guiadas, na formação de suas almas, de todo seu ser, pela observância dessas Promessas! É impressionante a sua atualidade, sobretudo, no que se refere à concepção atual do que seja o centro daquilo a que damos o nome de personalidade.
Personalidade é a consistência da alma, o conjunto de características que determinam os padrões de pensar, sentir e agir; é a individualidade pessoal e social de alguém: um processo gradual, complexo e único a cada indivíduo.
Qual teria sido a personalidade de Jesus?
Sem resvalar nos exageros dos psicologismos, quando falamos do Coração de Jesus estamos exprimindo algo da sua personalidade, talvez sua marca mais forte. Jesus não era cérebro – à moda dos filósofos gregos. Tampouco era ação – ao jeito dos acadêmicos romanos.
Jesus era coração.
Observem que o coração está em primeiro lugar na trajetória da Revelação de Deus aos homens: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força” (Dt 6,5). É para que Deus seja amado com todo o intelecto, os sentimentos, as emoções, a vontade: com todo o ser. O termo LEB, um termo judaico para “coração”, é o conceito antropológico empregado com maior frequência no AT: quase mil vezes.
No tempo do AT, não se conhecia a função essencial do coração de fazer circular o sangue. Oséias falou da envoltura ou recipiente do coração (Os 13, 8). Abigail disse a Davi que o seu coração morrera “dentro dela” e que se tornara como uma pedra (1Sm 25, 37).
Como podem ver, o AT dava pouca importância ao aspecto físico do coração, não tanto quanto as suas funções psíquicas e espirituais. Atribuía-se, então, ao coração tudo o que nós atribuímos à cabeça e ao cérebro: capacidade de perceber, raciocinar, pensar, compreender, entender e tomar conhecimento, a consciência, memória, conhecimento, sentimento, vontade e juízo.
Em consonância com a Sagrada Escritura, a sabedoria do povo simples sabe que alegria e tristeza também podem ser definidas como expressões do coração (Jz 19,3; S1 104,15). Derramar o coração é fazer a alma subir ao encontro das realidades conscientes (Lm 2,19). O AT fala de coração e de espírito “quebrantados” (S1 34,18). Assim como os termos NEPESH (alma) e RUAH (espírito), o conceito de “coração” se refere à pessoa toda (Pv 3,1).
São as riquezas antropológicas da Revelação de Deus.
Dentro desse conceito, as paixões não são transtornos da alma: o ascetismo não era, exatamente, um ideal na Bíblia. A fonte do mal não estava na paixão, mas, justamente, na cauterização, insensibilidade e dureza do coração. No AT, o estado ideal não é a apatia, como era para os estoicos, mas a compaixão, como é para Javé (Os 11,8).
A consciência era também vinculada ao coração. O coração de Davi exigiu que fosse ouvido em duas ocasiões: depois que ele cortou a ponta da veste de Saul (1Sm 24,6) e depois fazer um recenseamento das suas forças militares (2Sm 24,10). É preciso ouvir a alma. O coração como centro da personalidade é frequentemente associado a esse ouvir (Dt 29,4; 1Rs 3,9-12; Pv 2,2). Uma pessoa inteligente era alguém de coração; ao tolo, faltava coração (Pv 10,13). Também, o amor genuíno está arraigado no coração (Jz 16,15), sem, todavia, o sentido romântico shakespeariano.
É infindável a teologia do coração no AT.
O que importa para os cristãos é o real significado do Coração de Jesus, uma devoção que deve ser praticada como extensão da vontade e do propósito humanos. A interioridade do coração expressa a santidade humana, sua vontade, sua alma e seus pensamentos. O coração de uma pessoa demonstra a união de todas as suas reais intenções: nosso coração nos revela.
Por isso, cultuamos o Sagrado Coração de Jesus, onde colocamos nosso foco e nosso amor. O coração é um dos modos para falar do infinito amor de Deus, do amor que chega a seu ponto alto na entrega consciente e voluntária de Jesus.
Nas primeiras sextas-feiras de cada mês e no mês de junho temos a oportunidade de conhecer a nossa razão de ser e a razão dos nossos propósitos. Nesses tempos fortes, nos é dada a oportunidade de elevar a alma ao Coração de Jesus para pedir conforto e sabedoria, sem os quais é impossível continuar sozinhos nosso caminho de santidade.
Uma das maiores riquezas espirituais de minha formação, enquanto seminarista, foi a convivência, nos anos da Teologia, com os padres da Congregação do Coração de Jesus. A eles, devo muito de meu aprendizado e vivência dessa riqueza incalculável no tesouro espiritual da Igreja: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Hoje vivemos o triste panorama de existências sem sentido e sem saída, num pano de fundo da solidão que nos envolve. Muitas obras literárias escancararam essa dura realidade, como os contos do escritor russo Anton Tchecov. Num deles, chamado “Angústia”, um velho cocheiro, não tendo ninguém com quem conversar, fala o tempo todo com seu cavalo, tão velho e cansado quanto o próprio cocheiro. Quanta solidão!
Por isso, o Coração de Jesus, fonte de toda a consolação, é o endereço certo do nosso coração. Com ele, podemos falar e nos queixar, certos de que seremos ouvidos, sem julgamentos nem recriminações. O Coração de Jesus, nossa paz e reconciliação, nos traz todas as certezas de que o mundo nos arrancou, desde muito cedo. O Coração de Jesus, Rei e centro de todos os corações, organiza nossa vida e nossos sentimentos em torno das verdadeiras realidades, aquelas que valem a pena, pelas quais se possa viver e morrer.
Desejo aos irmãos e irmãs que o mês de junho, no meio da pandemia, seja pleno de encontros com Deus, em meio aos quais passaremos, invariavelmente, pelo amor do Coração do seu Filho Jesus, fornalha ardente de caridade. O vírus não suporta o calor. O calor do Coração de Jesus destrói os mais arcaicos vírus de egoísmo que ainda nos contaminam e nos adoecem.
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
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