Todos na mesma barca
Sempre forte e
interpelante é o gesto poético-espiritual do Papa Francisco, na Praça São Pedro
– a praça das multidões. Somente o Pontífice, trajando o branco da paz, em
oração na praça vazia, naquele contexto de pandemia da COVID-19, que dizimou
tantas vidas. Das palavras proféticas de Francisco ecoou a sabedoria do
Evangelho inspirada na cena da tempestade que amedrontou os discípulos de
Jesus: “Ninguém se salva sozinho. Todos estão na mesma barca”. Esta convicção é
uma sabedoria que se contrapõe ao orgulho pretensioso e à ingratidão,
fundamentos da torre de Babel que é monumento à soberba humana. A consciência
de que se está em travessia, partilhando o trajeto de toda a humanidade,
assevera a verdade de que todos estão “na mesma barca” e só a humilde atitude
de se reconhecer como membro de um mesmo “corpo”, que é a “barca”, pode levar
ao cultivo do sentimento de pertencimento, desdobrado na sábia coragem para
contribuir no enfrentamento da “tempestade” que leva perigo a
todos.
Sabiamente, a
Igreja Católica, na sua tradição e ensinamentos bimilenares, se reconhece como
uma “barca”, a “barca de Cristo”, sob o leme comandado por Pedro, em uma
travessia perigosa e exigente. A riqueza dessa metáfora, com força sapiencial e
em tom de advertência, é aplicável à humanidade, à família de cada um, às
instituições. Em todos os contextos, ninguém se salva sozinho. Essa
incontestável verdade, para alicerçar a corresponsabilidade de uns pelos
outros, pede atitudes fundamentadas em adequada envergadura moral, espiritual e
humanística, essencial a uma “travessia” vitoriosa. Essa adequada envergadura
não pode ser confundida com capacidade intelectual. Aliás, causa perplexidade
constatar que há cidadãos racional e intelectualmente muito capacitados, mas
com sérios comprometimentos humanos e emocionais. Revelam essas
lacunas na incompetência para superar mágoas, na inabilidade para exercer a
gratidão pelo muito que receberam. Assim, julgam-se no direito de agir
tiranicamente e tudo reduzir ao tamanho de suas emoções, ao seu modo de
enxergar situações, pessoas.
Os que se deixam
contaminar pela ingratidão não são capazes de perceber: nas suas próprias
conquistas também estão inscritos aqueles com os quais se partilha a mesma
“barca de travessia”. A incapacidade para reconhecer a importância do
semelhante na própria vida leva à perda de oportunidades, alimenta o ódio,
desencadeando ataques. Um caminho que pode até levar a conquistas efêmeras,
pois são alcançadas com prejuízos à própria “barca”. A falta de competência
para enxergar que “ninguém se salva sozinho” explica a escassez de lideranças
transformadoras. Ao invés de líderes, na sociedade surge cada vez mais pessoas
enjauladas no cartório de seus interesses, situados no horizonte encurtado das
convicções próprias. Consequentemente, convive-se com prejuízos de todo tipo,
das impositivas depredações ao meio ambiente, inflamando reações perigosas da
natureza, até o desrespeito a direitos, desconsiderando a dignidade humana,
justificando os preconceitos, a propagação de mentiras, autoritarismos e
manipulações.
“Todos na mesma
barca” deve ser interpelante princípio existencial para fecundar uma
espiritualidade do respeito e da gratidão, da generosidade e da humildade, do
compromisso com a vida de todos, para dissipar mágoas que multiplicam inimigos,
ódios que justificam todo tipo de guerra. Esse princípio existencial e
espiritual- “todos na mesma barca” – pode ter propriedades que alicerçam
pertencimentos restauradores e promotores do bem comum. E, assim, qualificar a
política, iluminar procedimentos profissionais e garantir legalidades a
funcionamentos institucionais, articular melhor os poderes de uma república e
amenizar as irritações que têm pautado relacionamentos nos lares, nas redes
sociais e em tantos outros ambientes. A espiritualidade do pertencimento mútuo
e fraterno é saída para a superação de naufrágios com perdas irreversíveis,
alimentados pela guerra de palavras.
Ao invés de
guerrear por palavras, cultivar a espiritualidade do pertencimento mútuo e
fraterno. Ajuda nesse exercício acolher o que diz Santo Antônio, hoje
celebrado: “Cessem as palavras, falem as obras”. Palavras sem obras podem estar
na contramão da “barca”, deixando-a à deriva. Vale adotar princípio evangélico
que é regra de ouro: o outro é sempre mais importante porque todos estão na
mesma “barca”. Desconsiderar esse princípio é singrar rumo à tempestade,
perecer por cultivar sentimentos e atitudes que levam às profundezas. Ainda há
tempo de se salvar. O caminho é se pautar pela consciência de que todos estão
na mesma barca.
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