Arquitetura da verdade
Durante muito
tempo a vida comum avançou porque havia medida e referência. A política se
equilibrava no juízo dos eleitores, a economia justificava o que produzia e
distribuía, a religião repousava em instituições que atravessavam séculos. Com
a virada do milênio as réguas se torceram e muitas paredes cederam. A política
passou a medir barulho em vez de argumento, a economia multiplicou cifras que
não chegam ao cotidiano, e até a religião se fragmentou em promessas sem
memória de igrejas que surgiram como modo de negócios que ainda precisam ser
examinados.
A verdade
precisa ser compartilhada, pois quando a verdade deixa de ser critério
compartilhado o abismo deixa de ser metáfora e começa a organizar a vida
pública.
Sair desse
terreno pede uma conversão paciente. É preciso recompor a confiança com pessoas
responsáveis, processos confiáveis e fatos que possam ser examinadas por
todos.
O nosso tempo
tornou visível, ainda, o risco das grandes fortunas tecnológicas. Há gênios da
engenharia e da informática que, ao cruzarem a fronteira da política, revelam
amadorismo, improviso e mentalidade tirânica. Plataformas que funcionam como
praças digitais passam a refletir humores pessoais. Mudanças bruscas de regras,
decisões tomadas em público como quem joga os dados, interferências que tocam a
vida de países inteiros.
Quando uma
infraestrutura crítica depende da vontade de um único proprietário, a fronteira
entre opinião e poder real se desfaz e a democracia fica exposta. Lembremos que
nenhum talento individual substitui instituições, que um bilionário não pode
funcionar como órgão regulador, que a esfera pública requer freios, contrapesos
e prestação de contas.
A política sofre
ainda outro deslocamento. A figura do influenciador, que vive do ritmo das
redes, impõe agenda e humor, mas quase nunca oferece projeto. Vence quem
captura atenção e não quem constrói processos. A cidade, se quer amadurecer,
precisa devolver tempo à deliberação. Espaços onde a opinião desacelera e vira
argumento, dados públicos que permitam refazer contas, decisões que venham
acompanhadas de razões minoritárias para que o dissenso tenha lugar. Democracia
é o exercício de justificar-se diante de muitos, e não a vitória do barulho
ruidoso.
Na economia a
planilha precisa enxergar pessoas. Progresso que suga tempo, saúde, vínculos e
o chão do qual vivemos não merece esse nome. A riqueza deve ter substância e
endereço. Isso começa quando medimos o que sustenta a vida e não apenas o que
infla gráficos. Metodologias abertas de impacto social e ambiental, auditorias
independentes, redes produtivas enraizadas no território, crédito paciente para
transição de atividades predatórias para atividades regenerativas. A métrica
existe para servir ao sentido e não para o substituir. Quando números e vidas
conversam, a economia respira.
Na religião a
fidelidade não dispensa exame. O crescimento veloz de comunidades sem lastro
institucional pode atrair muita gente, mas também expõe vulneráveis e fragiliza
a própria fé. Autoridade pastoral sem medida e sem verificação degenera em
culto de personalidade e busca de poder político. Comunidades adultas protegem
o carisma com regras claras, conselhos que prestam contas, formação séria de
ministros, proteção efetiva dos pequenos. A tradição não é peso morto, é
critério que impede reinvenções oportunistas do Evangelho.
Nada disso
avança sem reeducação do juízo. Fomos capturados por uma política da atenção
que inflama afetos e empobrece a reflexão.
O caminho não
pede a restauração de velhos muros nem a exibição de novas vitrines. Pede a
passagem do carisma sem prova para o trabalho e a caridade com prova. Líderes
que inspiram e se submetem a regras. Métricas que contam o que a vida sente. As
grandes fortunas, os pastores carismáticos, os políticos da atenção podem
continuar a contribuir, desde que aceitem a companhia dos processos. Se a
modernidade ensinou a medir e o nosso tempo confundiu o que medir, a etapa
seguinte é recuperar a medida como serva do significado.
Verdade que
volta para casa, porque pode ser habitada, examinada e partilhada.
Dom Lindomar Rocha Mota - Bispo de São Luís de Montes Belos (GO)

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