Escutar a própria sede é
interpretar o desejo que temos em nós
Nós batizados
formamos uma comunidade de desejosos? Os cristãos têm sonhos? A Igreja é um
laboratório do Espírito onde nossos filhos e filhas profetizam, nossos anciãos
têm sonhos e nossos jovens constroem novas visões, não somente religiosas? -
pergunta o pregador, Pe. José Tolentino.
Cidade do
Vaticano - “Há em nossas culturas e, ao mesmo tempo, em nossas Igrejas, um
déficit de desejo. Quando se percebe, no momento atual, o emergir, e em escala
cada vez maior, de sujeitos sem desejo, isso deve levar-nos a uma autocrítica
eclesial.” É uma constatação e uma das afirmações candentes contidas na
meditação vespertina do pregador dos Exercícios Espirituais, Pe. José Tolentino
de Mendonça, propostos ao Papa e à Cúria Romana em Ariccia, nas proximidades de
Roma, cujo Retiro Espiritual de Quaresma prosseguirá até o próximo sábado.
Tratou-se da terceira meditação, após a primeira da tarde de domingo e a
seguinte da manhã desta segunda-feira (19/02).
Intitulada “Dei-me
conta de ser sedento”, a meditação da tarde desta segunda-feira articulou-se em
quatro pontos, concluindo-se com a "oração da sede".
Perder o medo de
reconhecer nossa sede
O pregador
partiu de quatro verbos – irrigar, fecundar, germinar – para falar inicialmente
de um processo de revitalização do terreno qual metáfora da nossa vida. Tendo
advertido que a transformação não se dá se impermeabilizamos a vida em sua
crosta, afirmou que devemos perder o medo de reconhecer a nossa sede e o nosso
ser sedento.
Na meteorologia
se usa uma tabela, o Índice de Palmer, para medir a intensidade da seca em seus
vários estágios, afirmou. E a intensidade da seca espiritual, como se mede? –
perguntou-se o pregador dos Exercícios.
“Intelectualizamos
demasiadamente a fé. Construímos um fenomenal castelo de abstrações”, observou. “Preocupamo-nos mais com a credibilidade racional da experiência de fé do que
com a sua credibilidade existencial, antropológica e afetiva”, constatou.
“Ocupamo-nos
mais da razão do que do sentimento. Deixamos para trás a riqueza do nosso mundo
emocional.”
Feitas tais
constatações, citou o teólogo canadense Bernard Lonergan, que evocava a
necessidade de olhar mais, na construção doutrinal, para o significado das
nossas emoções. Em suas considerações sobre o estado da nossa sede recorreu à
literatura, que nos é de auxílio, ressaltou.
Escritores e
poetas são importantes mestres espirituais
Em nossos
dias assistimos cada vez mais a utilização da literatura ao fazer teologia,
afirmou, acrescentando que hoje estamos compreendendo melhor que os escritores
e os poetas são mestres espirituais importantes. Após destacar que as obras
literárias podem ser de grande utilidade em nosso caminho de maturação
interior, frisou que uma das razões fundamentais é que “a vida espiritual
progride somente quando é uma revisitação da existência em sua totalidade, em
sua diversidade.
Para tal citou,
entre outros, a escritora brasileira Clarice Lispector, a qual, com a força de
uma declaração autobiográfica, narra a tomada de consciência da intensidade de
sua sede.
Falar de sede é
falar da existência real e não da ficção de nós mesmos à qual muitas vezes nos
adequamos. E iluminar uma experiência, mais que um conceito, acrescentou Pe.
José Tolentino, advertindo em seguida para a dificuldade que podemos ter até
mesmo de reconhecer o nosso ser sedento.
Desejo da
verdade, beleza e bondade
Escutar a
própria sede é interpretar o desejo existente em nós. Desejo incessante da
verdade, da beleza e da bondade que faltam. O pregador dos Exercícios
Espirituais propostos ao Papa e à Cúria Romana advertiu ainda que devemos
distinguir o desejo de uma mera necessidade, que se aplaca e se satisfaz com a
posse de um objeto. Não confundamos desejo com as necessidades. A necessidade é
uma carência contingente do sujeito. O infinito do desejo é desejo de infinito.
Citou a
revisitação ao “discurso platônico do desejo em chave mística” feita por Simone
Weil, para quem, não é o nosso desejo que alcança Deus: “se permanecemos
sedentos e desejosos, é Deus mesmo que desce em nossa humanidade para preencher
o nosso desejo de plenitude”.
Enquanto
desejamos objetos, quaisquer que sejam; enquanto deixamos que a nos mover seja
a busca das coisas, carreiras, títulos, honorificências, nosso desejar não é
ainda um verdadeiro desejar.
“O desejo
genuíno tem início quando ele se formula, nem mais nem menos, como pura
abertura ao outro.”
Hoje se torna cada
vez mais claro que as sociedades capitalistas, organizadas em torno do consumo,
que exploram avidamente as compulsões de satisfação de necessidades induzidas
pela publicidade, estão na prática removendo a sede e o desejo tipicamente
humanos, fazendo com que a vida perca seu horizonte, afirmou taxativamente Pe.
José Tolentino.
Voltando seu
olhar para a vida da Igreja, tais constatações serviram para o pregador dos
Exercícios Espirituais propor as seguintes interpelações:
“Nós batizados
formamos uma comunidade de desejosos? Os cristãos têm sonhos? A Igreja é um
laboratório do Espírito onde, como no oráculo de Joel (3,1), nossos filhos e
filhas profetizam, nossos anciãos têm sonhos e nossos jovens constroem novas
visões, não somente religiosas, mas também novas compreensões culturais,
econômicas, científicas e sociais?”
Questões mais
contundentes
Tais
interrogações foram propedêuticas a algumas questões mais contundentes: A
Igreja tem fome e sede de justiça (Mt 5,6)? Os cristãos esperam realmente,
segundo a promessa, “novos céus e uma nova terra, nos quais habita a justiça”
(2Pd 3,13)?
Sede de Deus
No último ponto
da meditação vespertina desta segunda-feira, no qual tratou da sede de Deus, o
sacerdote português frisou que “talvez nós cristãos, e em particular nós
pastores, devemos valorizar mais a espiritualidade da sede, mais que as
estruturas”. “Nós cristãos e em particular nós pastores”, prosseguiu, “devemos
melhor reconciliar-nos com nossa vulnerabilidade”.
Por fim,
destacou que o “Papa Francisco nos recorda que uma das piores tentações é a
autossuficiência e a autorreferência”. Abraçar a própria vulnerabilidade é
aceder ao desejo de ser reconhecidos e tocados por Jesus.
Oração da sede
“Ensina-me,
Senhor, a beber da mesma sede de Ti, como quem se alimenta mesmo na penumbra do
frescor da fonte”...
“Que esta sede
se faça mapa e viagem palavra acesa e gesto que prepara a mesa sobre a qual se
partilha o dom.”
“E quando darei
de beber a Teus filhos seja não porque possuo a água mas porque como eles sei o
que é a sede”.
.............................................................................................................................................................
Quarta
meditação:
"A sede de nada que faz adoecer"
Nesta
terça-feira (20/02), o pregador dos exercícios espirituais, Pe. José Tolentino
Mendonça, refletiu sobre o contrário da sede: a preguiça - a 'atonia' da alma -
e seus efeitos.
Cidade do
Vaticano - Prosseguem na Casa Divino Mestre, em Ariccia, os exercícios
espirituais do Papa Francisco e de seus colaboradores da Cúria. Na
manhã desta terça-feira (20/02), o pregador do retiro, Pe. José Tolentino
Mendonça, propôs uma meditação intitulada “Esta sede de nada que nos faz
adoecer”.
O contrário da
sede é a preguiça – disse o sacerdote. Quando perdemos a curiosidade e nos
fechamos ao inédito ficamos apáticos e começamos a ver a vida com indiferença.
Por sua vez, a sede nos ensina a arte de procurar, de aprender, colaborar, a
paixão de servir.
“Quando renunciamos
à sede, começamos a morrer”
Existem muitos
sofrimentos escondidos cujas origens devemos descobrir e que segundo o
pregador, se escondem no mistério da solidão humana.
Quando nos
sentimos em ‘burnout’
Um dos problemas
mais comuns hoje é o chamado ‘burnout’: sentir-se em curto-circuito, esvaziado
de energias físicas e mentais. Este esgotamento emocional é definido por alguns
como ‘síndrome do bom samaritano desiludido’ e atinge muitas pessoas que fazem
da ajuda e da cura do próximo sua ocupação principal. Como os sacerdotes.
Pe. Tolentino
mencionou uma pesquisa realizada entre o clero da Diocese de Pádua (Itália),
que apontou que os sacerdotes com maior risco de burnout são os jovens (25-29
anos) e os mais idosos, com mais de 70 anos. Dentre as causas deste mal-estar,
estão o peso excessivo das expectativas (pessoais e dos outros), a ausência de
uma vida espiritual, o temor do juízo, a exposição demasiada a situações
humanas difíceis, pouca solidariedade entre os sacerdotes, incapacidade de se
comunicar...
Quando nos
sentimos amados como pessoas, amparados com afeto e acompanhamento, sabendo que
nosso trabalho interessa, envolve e apaixona, temos a certeza de existir. Mas
quando nos sentimos abandonados, incompreendidos e com o coração ferido por
dores que não sabemos curar, temos a impressão de não contar nada para
ninguém.
“Fica só um
vazio, uma ‘cratera’ existencial a ser preenchida com angústias e mundanidades:
álcool, redes sociais, consumismo ou hiperatividade”
A este respeito,
o padre lembrou que somos todos diferentes, cada um com sua beleza e
fragilidades. A beleza humana é aceitar-se como somos; não viver nos sonhos ou
ilusões, na raiva e na tristeza. Ter o direito de ser o que somos... e seremos
amados por Deus e preciosos a seus olhos.
Jonas ou a
necessária terapia do desejo
Recorrer à
terapia do humor para satisfazer o desejo: o livro bíblico de Jonas nos faz
sorrir salutarmente de nós mesmos, ao invés de dramatizar. Ele nos diz que a
sabedoria está nos anunciadores de esperança e não nos apocalíticos pregadores
de tragédias.
A anatomia da
tristeza
‘Um dos
sinônimos da preguiça, a ‘atonia’ da alma, é a tristeza’, afirmou o pregador.
“Nem sempre o
problema é o excesso de atividade, mas atividades mal vividas, sem motivação
adequada, sem a espiritualidade que a torna desejável”
Em relação à
pastoral, a preguiça pode ter diferentes origens: insistir em projetos
irrealizáveis; não aceitar a evolução dos processos; perder o contato real com
as pessoas, não saber esperar, querer dominar o ritmo da vida... A ansiedade de
obter resultados imediatos... a sensação de fracasso, de ser criticado, de
cruz.
Aprendam de mim:
‘vem’
Pe. Tolentino
concluiu sua meditação relacionando a nossa sede ‘de água’ com a palavra que
revela a necessidade profunda, íntima e dolorosa ‘vem’, que a Igreja
experimenta com a chegada no Espírito. Nesta palavra está o sinal de tudo o que
precisamos, a razão de nossa esperança e ao mesmo tempo, a razão de nosso
fracasso, cansaço... e a necessidade de superar tudo isso em Deus.
............................................................................................................................................................
Quinta
meditação:
"A sede de Jesus"
A sede de Jesus
é a sede de dar água viva, a sede de conceder à Igreja o dom da água viva.
Cidade do
Vaticano - O Papa Francisco e seus colaboradores da Cúria Romana prosseguem os
exercícios espirituais na Casa Divino Mestre, em Ariccia.
“A sede de
Jesus” foi o tema proposto na quinta meditação pelo pregador do retiro, Pe.
José Tolentino de Mendonça, na tarde desta terça-feira (20/02).
O sacerdote
português iniciou a meditação com um trecho do Evangelho de João em que Jesus,
após ter sido pregado na cruz, diz: “Tenho sede.”
Os Padres da
Igreja interpretaram essa sede de Jesus sobretudo como “sede corporal”, não
dando muito valor ao sentido metafórico contido nessa declaração.
“A sede física
documentava de forma convincente que Jesus era de carne e osso como toda
pessoa”, mas tinha sede “da salvação dos homens”.
A sede da
samaritana e a sede de Jesus
No encontro com
a samaritana, Jesus pede água, mas é ele quem dá de beber e promete-lhe a “água
viva”. A samaritana não entende imediatamente as palavras de Jesus, “as
interpreta como sede física, mas desde o início Jesus dava um sentido
espiritual”.
“O seu desejo
sempre visava outra sede”, conforme explicou à samaritana: «Se você conhecesse
o dom de Deus, e quem lhe está pedindo de beber, você é que lhe pediria. E ele
daria a você água viva.»
Segundo Pe.
Tolentino, “a sede Jesus parece se extinguir somente quando ele se proclama
fonte de água viva e abre à promessa do dom do Espírito”.
“A sede é o selo
do cumprimento de sua obra e, ao mesmo tempo, do forte desejo de doar o
Espírito, verdadeira água viva capaz de saciar radicalmente a sede do coração
humano.”
O pregador do
retiro explicou que a sede da qual Jesus fala é uma sede existencial que se
extingue, quando a nossa vida se converge em direção ao Senhor.
“Ter sede, é ter
sede Dele. Somos chamados a viver de uma centralidade cristológica: sair de nós
mesmos para buscar em Cristo aquela água que sacia a nossa sede, vencendo a
tentação da autorreferencialidade que nos deixa doentes e tiraniza”.
“A sede de Jesus
é a sede de dar água viva, a sede de conceder à Igreja o dom da água viva. Para
os fiéis, a sede de água viva é a sede de aprofundamento da fé, sede de
penetrar no mistério de Jesus, sede do Espírito. Para Jesus, a sede é o desejo
de comunicar todos esses dons.”
A sede de Jesus
revela a sede humana
Segundo Pe.
Tolentino, “a sede de Jesus ilumina e responde à sede de Deus à falta de
sentido e verdade, ao desejo de todo ser humano de ser salvo, mesmo que seja um
desejo oculto ou enterrado debaixo dos detritos existenciais”.
O “Tenho sede”,
proclamado por Jesus, envolve a Igreja de todos os tempos, em particular a
nossa.
A esse
propósito, o sacerdote português citou como exemplo Madre Teresa de Calcutá,
que em 10 de setembro de 1946, a bordo de um trem que ligava Siliguri a
Darjeeling, na Índia, viveu uma forte experiência espiritual: “de forma quase
física sentiu a sede de Jesus que a chamava a dar a vida a serviço da sede dos
pobres e rejeitados, dos últimos dos últimos. O coração e a alma das
Missionárias da Caridade é somente este: a sede do coração de Jesus escondido
no pobre.”
Acolher o
Espírito, dom da sede
O Espírito
continua nos fazendo ouvir a voz de Jesus que nos diz: “Tenho sede!”
“Ele é o
dinamismo do Ressuscitado em nós. O Espírito é a continuação dessa história,
uma continuação que não é repetida, não é sempre a mesma. É a fantasia do
Espírito, a sua criatividade que difunde em nós dons diferentes, carismas
diferentes, competências complementares a fim de construirmos o Reino de Deus
onde quer que estejamos.”
O Espírito “é a
força motriz da vida da Igreja e da vida de todo cristão. Por isso, precisamos
do Espírito Santo e devemos redescobrir a fé em seu poder. Muitas vezes o
Espírito Santo permanece completamente esquecido. Devemos redescobrir o
Espírito Santo, porque sem Ele a Igreja é somente memória, o que fazemos é
somente uma recordação do que foi. É o Espírito que diz: o cristianismo é
também presente e futuro”, disse Pe. Tolentino.
“Somos chamados
a viver na esperança toda situação da vida. Às vezes, somos uma Igreja em que
falta a vivacidade do Espírito, a juventude do Espírito. É o Espírito que nos
dá o sentido de plenitude, o sentido da missão e que nos torna uma Igreja em
saída.”
................................................................................................................................................
Fonte: www.vaticannews.va
Nenhum comentário:
Postar um comentário