Na Quaresma, devemos sair da própria alienação existencial
Cidade do
Vaticano (RV) – “A Quaresma deste Ano Jubilar é um tempo favorável para todos
poderem, finalmente, sair da própria alienação existencial, graças à escuta da
Palavra e às obras de misericórdia”: é o que afirma o Papa Francisco na Mensagem para a Quaresma 2016, divulgada na
terça-feira (26/01).
"'Prefiro a
misericórdia ao sacrifício” (Mt 9, 13). As obras de misericórdia no caminho
jubilar" é o tema da Mensagem do Pontífice. No texto, Francisco destaca
que a misericórdia de Deus transforma o coração do homem, tornando-o
assim, por sua vez, capaz de misericórdia.
Que a Quaresma nos leve à escuta da Palavra e à prática das obras de misericórdia |
Estas obras,
ressalta o Papa, nos recordam que a nossa fé se traduz em atos concretos e
quotidianos, destinados a ajudar o próximo no corpo e no espírito e sobre os
quais havemos de ser julgados: alimentá-lo, visitá-lo, confortá-lo, educá-lo.
“Será uma maneira
de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da
pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são
os privilegiados da misericórdia divina”, escreve o Pontífice, citando a Bula
de convocação do Jubileu.
Todavia, adverte
o Papa, o pobre mais miserável é aquele que não aceita reconhecer-se como
tal. “Pensa que é rico, mas na realidade é o mais pobre dos pobres. E quanto
maior for o poder e a riqueza à sua disposição, tanto maior pode tornar-se esta
cegueira mentirosa. E esta cegueira está acompanhada por um soberbo delírio de
onipotência.”
Este delírio,
prossegue Francisco, “pode assumir também formas sociais e políticas, como
mostraram os totalitarismos do século XX e mostram hoje as ideologias do pensamento
único e da tecnociência que pretendem tornar Deus irrelevante e reduzir o homem
a massa possível de instrumentalizar. E podem atualmente mostrá-lo também as
estruturas de pecado ligadas a um modelo de falso desenvolvimento fundado na
idolatria do dinheiro, que torna indiferentes ao destino dos pobres as pessoas
e as sociedades mais ricas, que lhes fecham as portas recusando-se até mesmo a
vê-los”.
Portanto, exorta
o Papa, a Quaresma deste Ano Jubilar é um tempo favorável para todos
poderem, finalmente, sair da própria alienação existencial, graças à escuta da
Palavra e às obras de misericórdia.
E explica: “Se
por meio das obras corporais, tocamos a carne de Cristo nos irmãos e irmãs
necessitados de ser nutridos, vestidos, alojados, visitados, as obras
espirituais tocam mais diretamente o nosso ser de pecadores: aconselhar,
ensinar, perdoar, admoestar, rezar”.
Para Francisco,
estas obras nunca podem ser separadas, pois é precisamente tocando a carne de
Jesus crucificado no miserável que o pecador pode receber a consciência de ser
ele próprio um pobre mendigo. “Não percamos este tempo de Quaresma favorável à
conversão!”, é o convite final do Santo Padre. (BF)
.............................................................................................................................................................
Íntegra da Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma:
«“Prefiro a
misericórdia ao sacrifício” (Mt 9, 13).
As obras de misericórdia no caminho
jubilar»
1. Maria, ícone
duma Igreja que evangeliza porque evangelizada
Na Bula de
proclamação do Jubileu, fiz o convite para que «a Quaresma deste Ano Jubilar
seja vivida mais intensamente como tempo forte para celebrar e experimentar a
misericórdia de Deus» (Misericordiӕ
Vultus, 17). Com o apelo à escuta da Palavra de Deus e à iniciativa «24 horas
para o Senhor», quis sublinhar a primazia da escuta orante da Palavra, especialmente
a palavra profética. Com efeito, a misericórdia de Deus é um anúncio ao mundo;
mas cada cristão é chamado a fazer pessoalmente experiência de tal anúncio. Por
isso, no tempo da Quaresma, enviarei os Missionários da Misericórdia a fim de
serem, para todos, um sinal concreto da proximidade e do perdão de Deus.
Maria, por ter
acolhido a Boa Notícia que Lhe fora dada pelo arcanjo Gabriel, canta
profeticamente, no Magnificat, a misericórdia com que Deus A predestinou. Deste
modo a Virgem de Nazaré, prometida esposa de José, torna-se o ícone perfeito da
Igreja que evangeliza porque foi e continua a ser evangelizada por obra do
Espírito Santo, que fecundou o seu ventre virginal. Com efeito, na tradição
profética, a misericórdia aparece estreitamente ligada – mesmo etimologicamente
– com as vísceras maternas (rahamim) e com uma bondade generosa, fiel e
compassiva (hesed) que se vive no âmbito das relações conjugais e parentais.
2. A aliança de
Deus com os homens: uma história de misericórdia
O mistério da
misericórdia divina desvenda-se no decurso da história da aliança entre Deus e
o seu povo Israel. Na realidade, Deus mostra-Se sempre rico de misericórdia,
pronto em qualquer circunstância a derramar sobre o seu povo uma ternura e uma
compaixão viscerais, sobretudo nos momentos mais dramáticos quando a
infidelidade quebra o vínculo do Pacto e se requer que a aliança seja
ratificada de maneira mais estável na justiça e na verdade. Encontramo-nos aqui
perante um verdadeiro e próprio drama de amor, no qual Deus desempenha o papel
de pai e marido traído, enquanto Israel desempenha o de filho/filha e esposa
infiéis. São precisamente as imagens familiares – como no caso de Oseias (cf.
Os 1-2) – que melhor exprimem até que ponto Deus quer ligar-Se ao seu povo.
Convertei-vos e crede no Evangelho |
Este drama de
amor alcança o seu ápice no Filho feito homem. N’Ele, Deus derrama a sua
misericórdia sem limites até ao ponto de fazer d’Ele a Misericórdia encarnada
(cf. Misericordiӕ Vultus, 8). Na
realidade, Jesus de Nazaré enquanto homem é, para todos os efeitos, filho de
Israel. E é-o ao ponto de encarnar aquela escuta perfeita de Deus que se exige
a cada judeu pelo Shemà, fulcro ainda hoje da aliança de Deus com Israel:
«Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus; o Senhor é único! Amarás o Senhor, teu
Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças»
(Dt 6, 4-5). O Filho de Deus é o Esposo que tudo faz para ganhar o amor da sua
Esposa, à qual O liga o seu amor incondicional que se torna visível nas núpcias
eternas com ela.
Este é o coração
pulsante do querigma apostólico, no qual ocupa um lugar central e fundamental a
misericórdia divina. Nele sobressai «a beleza do amor salvífico de Deus
manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado» (Evangelii gaudium, 36),
aquele primeiro anúncio que «sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes
maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra,
durante a catequese» (Ibid., 164). Então a Misericórdia «exprime o
comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade
de se arrepender, converter e acreditar» (Misericordiӕ Vultus, 21), restabelecendo
precisamente assim a relação com Ele. E, em Jesus crucificado, Deus chega ao
ponto de querer alcançar o pecador no seu afastamento mais extremo, precisamente
lá onde ele se perdeu e afastou d'Ele. E faz isto na esperança de assim poder
finalmente comover o coração endurecido da sua Esposa.
3. As obras de
misericórdia
A misericórdia
de Deus transforma o coração do homem e faz-lhe experimentar um amor fiel,
tornando-o assim, por sua vez, capaz de misericórdia. É um milagre sempre novo
que a misericórdia divina possa irradiar-se na vida de cada um de nós,
estimulando-nos ao amor do próximo e animando aquilo que a tradição da Igreja
chama as obras de misericórdia corporal e espiritual. Estas recordam-nos que a
nossa fé se traduz em atos concretos e quotidianos, destinados a ajudar o nosso
próximo no corpo e no espírito e sobre os quais havemos de ser julgados:
alimentá-lo, visitá-lo, confortá-lo, educá-lo. Por isso, expressei o desejo de
que «o povo cristão reflita, durante o Jubileu, sobre as obras de misericórdia
corporal e espiritual. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas
vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no
coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia
divina» (Ibid., 15). Realmente, no pobre, a carne de Cristo «torna-se de novo
visível como corpo martirizado, chagado, flagelado, desnutrido, em fuga... a
fim de ser reconhecido, tocado e assistido cuidadosamente por nós» (Ibid., 15).
É o mistério inaudito e escandaloso do prolongamento na história do sofrimento
do Cordeiro Inocente, sarça ardente de amor gratuito na presença da qual
podemos apenas, como Moisés, tirar as sandálias (cf. Ex 3, 5); e mais ainda,
quando o pobre é o irmão ou a irmã em Cristo que sofre por causa da sua fé.
Diante deste
amor forte como a morte (cf. Ct 8, 6), fica patente como o pobre mais miserável
seja aquele que não aceita reconhecer-se como tal. Pensa que é rico, mas na
realidade é o mais pobre dos pobres. E isto porque é escravo do pecado, que o
leva a utilizar riqueza e poder, não para servir a Deus e aos outros, mas para
sufocar em si mesmo a consciência profunda de ser, ele também, nada mais que um
pobre mendigo. E quanto maior for o poder e a riqueza à sua disposição, tanto
maior pode tornar-se esta cegueira mentirosa. Chega ao ponto de não querer ver
sequer o pobre Lázaro que mendiga à porta da sua casa (cf. Lc 16, 20-21), sendo
este figura de Cristo que, nos pobres, mendiga a nossa conversão. Lázaro é a
possibilidade de conversão que Deus nos oferece e talvez não vejamos. E esta
cegueira está acompanhada por um soberbo delírio de onipotência, no qual ressoa
sinistramente aquele demoníaco «sereis como Deus» (Gn 3, 5) que é a raiz de
qualquer pecado. Tal delírio pode assumir também formas sociais e políticas,
como mostraram os totalitarismos do século XX e mostram hoje as ideologias do
pensamento único e da tecnociência que pretendem tornar Deus irrelevante e
reduzir o homem a massa possível de instrumentalizar. E podem atualmente
mostrá-lo também as estruturas de pecado ligadas a um modelo de falso
desenvolvimento fundado na idolatria do dinheiro, que torna indiferentes ao
destino dos pobres as pessoas e as sociedades mais ricas, que lhes fecham as
portas recusando-se até mesmo a vê-los.
Portanto a
Quaresma deste Ano Jubilar é um tempo favorável para todos poderem, finalmente,
sair da própria alienação existencial, graças à escuta da Palavra e às obras de
misericórdia. Se, por meio das obras corporais, tocamos a carne de Cristo nos
irmãos e irmãs necessitados de ser nutridos, vestidos, alojados, visitados, as
obras espirituais tocam mais diretamente o nosso ser de pecadores: aconselhar,
ensinar, perdoar, admoestar, rezar. Por isso, as obras corporais e as
espirituais nunca devem ser separadas. Com efeito, é precisamente tocando, no
miserável, a carne de Jesus crucificado que o pecador pode receber, em dom, a
consciência de ser ele próprio um pobre mendigo. Por esta estrada, também os
«soberbos», os «poderosos» e os «ricos», de que fala o Magnificat, têm a
possibilidade de aperceber-se que são, imerecidamente, amados pelo Crucificado,
morto e ressuscitado também por eles. Somente neste amor temos a resposta
àquela sede de felicidade e amor infinitos que o homem se ilude de poder colmar
mediante os ídolos do saber, do poder e do possuir. Mas permanece sempre o
perigo de que os soberbos, os ricos e os poderosos – por causa de um fechamento
cada vez mais hermético a Cristo, que, no pobre, continua a bater à porta do
seu coração – acabem por se condenar precipitando-se eles mesmos naquele abismo
eterno de solidão que é o inferno. Por isso, eis que ressoam de novo para eles,
como para todos nós, as palavras veementes de Abraão: «Têm Moisés e o Profetas;
que os ouçam!» (Lc 16, 29). Esta escuta ativa preparar-nos-á da melhor maneira
para festejar a vitória definitiva sobre o pecado e a morte conquistada pelo
Esposo já ressuscitado, que deseja purificar a sua prometida Esposa, na
expectativa da sua vinda.
Não percamos
este tempo de Quaresma favorável à conversão! Pedimo-lo pela intercessão
materna da Virgem Maria, a primeira que, diante da grandeza da misericórdia
divina que Lhe foi concedida gratuitamente, reconheceu a sua pequenez (cf. Lc
1, 48), confessando-Se a humilde serva do Senhor (cf. Lc 1, 38).
Vaticano, 4 de
Outubro de 2015
Festa de S.
Francisco de Assis
[Franciscus]
........................................................................................................................
Fonte: radiovaticana.va news.va
Nenhum comentário:
Postar um comentário