Palavra de um especialista
Moisés
Sbardelotto, jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e autor dos
livros “E o Verbo se fez rede” (Paulinas, 2017) e “E o Verbo se fez bit”
(Santuário, 2012) publicou artigo, esta semana, no periódico “Mensageiro de
Santo Antônio” no qual faz uma denúncia sobre o modo como muitos católicos se
comportam nas redes sociais digitais.
Intolerância,
ódio e indiferença
Na primeira
parte do artigo, ele constata: “Intolerância, ódio, indiferença. Discriminação,
difamação, desinformação. Não, não se trata apenas daquilo que encontramos em
boa parte dos grandes meios de comunicação. Também não se trata daquilo que
circula nas redes sociais digitais em geral. Infelizmente, esse é o panorama
das interações entre católicos e católicas em rede – ou, pelo menos, de
indivíduos que assim se identificam“. E pondera: “A pessoa que está do outro
lado da tela já não é um ‘irmão ou irmã na fé’, mas apenas alguém sobre o qual
se descarregam toda a raiva e o rancor pessoais, camuflados de defesa da
tradição, da doutrina e da liturgia, com citações artificiosamente pinçadas da
Bíblia e do Catecismo. Nada nem ninguém estão acima desse ‘Tribunal da Santa
Inquisição Digital’, nem mesmo o papa Francisco ou os bispos“.
Palavra da CNBB
O autor lembra
que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, na mensagem pública dada
durante a última assembleia-geral, em abril deste ano, advertia: “vivemos
um tempo de politização e polarizações que geram polêmicas pelas redes sociais
e atingem a CNBB […] A liberdade de expressão e o diálogo responsável são
indispensáveis. Devem, porém, ser pautados pela verdade, fortaleza, prudência,
reverência e amor”. Apesar dessa palavra clara do episcopado, o autor considera
que “cada vez mais, as redes sociais digitais convertem-se em patíbulos para a
realização generalizada de novos ‘autos de fé’. Nessas ‘fogueiras digitais’,
são condenados os supostos ‘hereges’ atuais, expressão-agressão que circula
abundantemente em páginas e grupos católicos nas redes, dirigida contra todos
aqueles que têm uma visão de Igreja diferente da do agressor. Esses
‘linchamentos simbólicos’ não ocorrem por determinação da hierarquia da Igreja,
mas por decisão de grupelhos de leigos, que se arrogam o direito – e até o
dever –, em nome da ‘sã doutrina’, de atirar a primeira pedra“.
Cibermilícias
católicas
Sbardelotto
continua: “Os atores que dinamizam esse triste fenômeno intracatólico já
ganharam algumas definições, como os chamados ‘catolibãs’, ou seja,
católicos-talibãs, que atuam com base na violência simbólica (mas nem por isso
menos preocupante e hedionda). Pregam a exclusão de tudo o que seja
‘catolicamente diferente’ e de todos os ‘catolicamente outros’. Para tais
extremistas, haveria apenas um único catolicismo, puro, cristalino, são e
verdadeiro, sem nuances, bem delimitado e definido – pelos próprios
esquemas e padrões mentais ou por documentos da Igreja de séculos passados“.
O autor informa
que o teólogo e historiador italiano Massimo Faggioli denominou tais grupos de
“cibermilícias católicas”, dada sua militância venenosa em prejuízo da comunhão
eclesial. Para ele, essas cibermilícias “usam uma linguagem extremista de ódio
em defesa da ortodoxia católica. Elas não veem isso nem como vício nem como
pecado”. Ainda lembrando a contribuição de Faggioli, afirma que esso é grave,
afirma porque pode originar uma eclesiologia que “humilha a Igreja, incluindo
as suas lideranças institucionais que parecem impotentes perante a pressão
social midiática”.
Papa Francisco
O autor do
artigo recorda que, recentemente, “o papa Francisco sentiu a necessidade de se
pronunciar com autoridade sobre esse fenômeno. Em sua última exortação
apostólica, Gaudete et exsultate [Alegrai-vos e exultai]: sobre o chamado à
santidade no mundo atual, ele dedicou um parágrafo inteiro a esses pecados
digitais: ‘Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de
violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio
digital. Mesmo nas mídias católicas, é possível ultrapassar os limites,
tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e
respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas
redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública e procura-se
compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de
vingança. É impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros
mandamentos, se ignora completamente o oitavo: ‘Não levantar falsos testemunhos’
e destrói-se sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como a língua
descontrolada ‘é um mundo de iniquidade; […] e, inflamada pelo Inferno,
incendeia o curso da nossa existência’ (Tg 3,6)” (GE, n. 115).
Sbardelotto
considera que, assim, fica claro não se tratar de algo menor, mas, como afirma
o papa Francisco, trata-se de verdadeiras “redes de violência” paradoxalmente
internas ao catolicismo, embebidas por difamação, calúnia vingança,
iniquidade, falsidade.
Prossegue, o
autor: “Propaga-se uma igreja paralela digital, que não condiz nem com os
tempos (para tais católicos, só vale aquilo que veio antes do Concílio Vaticano
II), nem com os lugares (qualquer tentativa de inculturação da fé nas
expressões populares ou periféricas seria inconcebível), nem com as pessoas (o
papa Francisco seria um ‘antipapa’, e os bispos brasileiros, simplesmente
‘trezentos picaretas’). Uma Igreja em mudança em mundo em mudança gera
incerteza e insegurança demais para eles. E, para buscar certezas e seguranças,
onde melhor do que em um passado eclesial mítico e na letra envelhecida e
enrijecida de doutrinas de antanho? ‘Sempre se fez assim’, afirmam, ‘e assim
sempre deve continuar sendo feito’… Mas o papado de Francisco vai por outros
caminhos. Ele pede uma ‘Igreja em saída’, em movimento, em missão“.
Sbardelotto
lembra que o Papa Francisco, em uma homilia na Casa Santa Marta, no dia 24 de
abril deste ano, comparou a Igreja a uma bicicleta: se ficar parada, cai. “O
equilíbrio da Igreja”, afirmou, “está precisamente na mobilidade, na fidelidade
ao Espírito Santo”.
Católicos
extremistas
Já encaminhando
para o seu final, a reflexão de Sbardelotto constata que “os católicos
extremistas defendem o imobilismo e a fixidez de dogma e rito. Buscam ficar
fora dessa ‘Igreja franciscana’. Constroem universos eclesiais paralelos,
especialmente em rede. Assim, tais católicos se manifestam como verdadeiros
‘e-reges’, hereges da era digital. Fazem uma ‘livre escolha’ (em grego,
hairesis) de aspectos do catolicismo que mais lhes agradam (mesmo que
ultrapassados ou até fictícios) e das pessoas mais aptas, segundo eles,
para comungar desse pseudocatolicismo. Tudo e todos os que não estão de acordo
com a sua visão de Igreja devem ser excluídos. Tal exclusão, muitas vezes
agressiva e violenta, é comunicada em rede como excomunhão (do latim,
excomunicatio) dos supostos ‘hereges’, ou seja, de todos aqueles que se desviam
desse imaginário eclesial. Para isso, opera-se uma ‘excomunicação’, uma
comunicação de que a comunicação alheia (do papa, dos bispos, dos demais
católicos) deve cessar ou não deveria nem existir“.
Sbardelotto
explica: “‘Excomunicar’ é a comunicação voltada ao silenciamento ou ao
aniquilamento de outra comunicação, para que o discurso próprio se torne único
e dominante. ‘Excomunicando’ os próprios irmãos na fé, tais católicos vão
corroendo a comunhão eclesial. Ao agirem comunicacionalmente como não cristãs,
essas pessoas se autoexcluem da comunhão eclesial. ‘Excomunicando’,
excomungam-se. A ‘autoridade digital’ desses católicos fundamentalistas não vem
do saber teológico (academia) nem do poder eclesiástico (hierarquia), mas de um
saber-fazer e de um poder-fazer midiáticos. Muitas vezes, trata-se de pessoas
sem qualquer relevância ou reconhecimento acadêmicos ou hierárquicos. Mas que
captaram muito bem as lógicas das mídias digitais (saber-fazer) e dominam seus
meios e linguagens (poder-fazer). E assim vão conquistando visibilidade,
notoriedade e autoridade sociais e eclesiais, atuando em rede como
‘inquisidores digitais’“.
Existe solução?
Sbardelotto
lembra, por fim, que “tudo isso explicita o possível ‘fim de um mundo’ para a
Igreja, marcado por declarações de autoridade institucional sobre a comunicação
católica, como o imprimatur (‘imprima-se’, autorização da Igreja para a
impressão de livros) e o nihil obstat (‘nada obsta’, permissão da Igreja para a
publicação de livros). Mas tais ‘selos de garantia’ não fazem sentido em um
ambiente ‘desordenado’ como o digital. Em rede, é o próprio indivíduo que se
autocomunica como católico ou não, é ele mesmo quem atribui um ‘selo de
catolicidade’ àquilo que lê, escreve, compartilha“.
O autor conclui:
“Tertuliano, escritor eclesiástico da Igreja primitiva, testemunhava que os
primeiros cristãos e cristãs viviam tão concretamente o ‘novo mandamento’ de
Jesus, que os pagãos exclamavam, admirados: ‘Vejam como se amam!’ Não é bem
isso que se vê hoje no ambiente digital”.
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Fonte: cnbb.org.br
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