Escutar o Filho Amado do Pai
Não tenhamos dúvidas: tudo aquilo que escutamos, mas verdadeiramente tudo, deve ser apenas a preparação para a escuta do que permanece em silêncio. Só no habitat do silêncio, nas jornadas longas de silêncio e de exposição em oração, a escuta pode amadurecer. (José Tolentino Mendonça)
♦ Sempre, neste segundo domingo da Quaresma, somos convidados a subir a montanha da transfiguração de Jesus com Pedro, Tiago e João. No final do retiro quaresmal, vamos comemorar a Páscoa do Senhor. Na Sagrada Liturgia da Vigília Pascal, vamos acender o círio com cantos de jubilação. Páscoa é festa da Luz. Uma estrela já havia encaminhado os passos dos magos, aqueles buscadores da claridade para o presépio do Menino. Jesus é a luz. Sua beleza mais densa manifesta-se em sua luminosa Ressureição. No meio da caminhada da Quaresma (ou da vida), somos convidados a fazer uma pausa e subir a montanha. Antes de contemplar o semblante chagado, empoeirado, desrespeitado em sua paixão temos, na montanha, uma prefiguração da glória.
♦ Lucas diz que Jesus levou consigo os apóstolos a uma alta montanha para rezar. Montanha, silêncio, lugar alto e afastado, propício para a oração. A transfiguração do Senhor se dá num espaço de recolhimento, sem ruídos e sem gestos estridentes. Está em união íntima com o Pai. Os dois se conhecem e se amam. Nesse misterioso face a face com o Pai há uma iluminação do semblante do Senhor. Ele é luz. Na realidade luz da luz. “Sua roupa ficou branca e brilhante”.
♦ Dois personagens se fazem presentes: Moisés e Elias. Moisés, aquele que falava com o Senhor como um amigo fala a um amigo. Moisés que ao descer da montanha depois das confabulações com o Senhor tinha o semblante todo iluminado. Tinha sido banhado da claridade do Altíssimo. Elias, o homem cansado da luta, desgastado pela oposição, coloca-se à entrada de uma caverna e quando a brisa suave acaricia seu rosto ele se dá conta que era o Senhor. Montanha, transfiguração, silêncio, oração. Oração que não é um mero balbuciar de formulas, mas êxtase de pobres que abraçam o Senhor em suas vidas. Tolentino gosta de dizer que rezar é abraçar a vida. Tempo do retiro quaresmal: tempo de oração com as portas do quarto fechadas. Houve, segundo Lucas, uma conversa dos personagens do Antigo Testamento com Jesus sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém. Mas os apóstolos dormiam… só acordam um pouco depois.
♦ Pedro exprime um desejo: “É bom estarmos aqui… vamos fazer três tendas e impedir que o tempo passe”. Experiência gozosa de uma proximidade de Deus. O invisível como que se torna palpável. Pessoas que foram se despojando de si, se desvencilhando de seu pequeno universo, que foram abrindo as portas de sua intimidade, no universo da fé, fazem experiência da proximidade do Senhor. A Quaresma não seria um tempo de exercitarmo-nos numa oração sem pressa, num estar diante do Senhor, no silêncio? Quando Pedro ainda estava falando “apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem”. Quando Deus nos envolve, ele atinge nosso nó interior e desde então tudo pode ser diferente. Temos receio do novo que irrompe em nossas vidas. Temos medo quando a majestade esplendorosa do Senhor se aproxima de nosso caminhar. Sua claridade nos ofusca.
♦ “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz”. No coração da Quaresma, no alto da montanha, num clima de silêncio somos convidados a abrir nossa intimidade para a audição do Filho amado. Escutar é mais do acolher sons que chegam em nosso aparelho auditivo. É dar hospitalidade para o Mistério de Deus que avizinha.
♦ Aqui se insere todo o capítulo do seguimento de Jesus, do aprendizado do discípulo. Nos últimos decênios fomos sendo levados a tomar distância de um cristianismo meramente herdado dos que nos precederam na fé. Fomos nos dando conta de que precisávamos com urgência decidir pessoalmente pelo seguimento. Alguns deixaram os ritos e práticas que lhes foram transmitidos. E deixaram tudo. Outros, a duras penas, estão tentando fazer sua vida pela audição atenta do Ressuscitado que lhes fala.
♦ “Os tempos estão mudando. E os tempos de mudança são inspiradores, não o esqueçamos. O inverno conspira para que surjam inesperadas flores. “O que está sendo dito para nós?”, é a pergunta necessária. O que é que esta avalanche cultural nos revela? De fato, a grande crise, a mais aguda não é sequer a dos acontecimentos, decisões e deserções que nos trouxeram aqui. Dia a dia, sobrepõe-se um problema maior: a crise da interpretação. Isto é, a falta de saber partilhado sobre o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um enquanto indivíduo e para todos enquanto comunidade, os modos possíveis de nos reinventarmos” (Tolentino, A mística do instante, p. 123)
Conclusão
♦ Nesse Jesus que percorria nossos caminhos nada mais aparece senão a fragilidade de todo ser humano. Ele é o servo. No tempo da caminhada seu rosto iria se cobrir de feiura. Sua verdadeira identidade haverá de transparecer na sua ressurreição. Mas atenção, a ressurreição é um mistério de fé e não a reanimação de um cadáver.
♦ Os apóstolos e nós, peregrinos nas plagas da quaresma, somos convidados a um tipo de oração marcada pelo silêncio, na montanha, sobretudo longe de os gritos do mundo e de nosso próprio eu. Quando Jesus ora a luz toma conta dele. Não poderíamos ser criaturas mais luminosas se tomássemos a decisão de ser mais íntimos do Senhor?
♦ Quaresma, Páscoa… tempo de renovação de nossos compromissos batismais. Importante deixar que ressoe dentro de nós a voz que veio da nuvem: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai-o”. Isto significa entrar na escola do discipulado. Temos a vida toda para escutar o filho amado.
Perguntas
◊ Quais os rostos desfigurados que conhecemos?
◊ Como podemos ter nossas roupas brancas e nosso rosto iluminado?
Oração
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FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.
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