sábado, 22 de fevereiro de 2025

Vale a pena refletir:

A difícil e delicada arte da convivência

Frei Almir Guimarães

O ser humano não se atreve a enfrentar decididamente a mudança de que realmente precisa: deixar de viver fechado egoisticamente em si mesmo para abrir-se a um amor solidário. (José Antonio Pagola)

 O trecho proclamado no Evangelho deste domingo vem de um discurso que em Mateus chamamos de Sermão da Montanha e em Lucas, o evangelista deste ano, Sermão da Planície. Estamos diante de orientações básicas que podem modelar o perfil do discípulo de Jesus, de modo particular no relacionamento com os outros. Misturam-se os temas da acolhida, da generosidade e do perdão. Quando percorremos o texto proclamado damo-nos conta de que se trata de exigentes e difíceis regras para a convivência entre as pessoas, de um programa que nos leva a viver um amor solidário apesar de todas as diferenças e descaminhos.

 Existe uma convivência normal entre as pessoas. Encontramo-nos com estes e aqueles ao longo de nossa viagem pela vida. Há esses que constituem nossa família. Pessoas próximas e pessoas menos próximas. O grau de intimidade não é o mesmo. Há alguns tratamos com um amor único e denso. Temos aqui em mente o bem-querer dos esposos, de pais e filhos, de membros da família. Sentimos que precisamos alimentar o bem-querer. Não basta uma convivência mais ou menos habitual, “costumeira”, quase insípida. Marido e mulher precisam crescer no bem-querer. Filhos e pais, pais e filhos haverão de rever sempre de novo a qualidade de seu bem-querer. Presença real de uns na vida dos outros. Não basta o virtual. Não bastam os encontros esporádicos.

 Nosso bem-querer vai para fora. Por vezes, ele se traduz numa grande e quase indestrutível amizade. Encontros mais ou menos regulares. Interesse efetivo. Olham juntos na mesma direção. Damo-nos conta que precisamos olhar detidamente para pessoas, de nosso relacionamento ou não que precisam de atenções especiais: dinheiro para pagar uma conta, exortação para deixar alguma coisa que destrói. Sentimos que não existimos apenas para viver em nossa familiazinha ninho quente, tudo “hermoso” e maravilhoso. Tudo o que é humano nos toca. A tragédia de Brumadinho atinge o fundo de nossa alma. Vocacionados para a solidariedade tal tragédia provoca revolta em nós. Uma parte nossa lá estava. O humano que foi destruído pelo descuido era um pouco de cada um de nós.

 Querer bem aos de perto, aos de casa e querer bem aos de fora. Nem sempre é fácil. Há pessoas de perto e de longe que nos fazem mal. Quem sabe também nós lhes fazemos. Filhos e filhas, enteados e enteadas sofrem opressão e abusos de toda ordem, dentro de casa. Há traições, brigas, guerra entre irmãos no momento da partilha da herança. Há indiferença solenes e calúnias levantadas. Há pedaços de nós que morrem num filho assassinado. Há casais que se toleram e nunca construíram um casamento viçoso. Há mortes que nos matam antes do tempo. Conviver com quem nos tira o chão de debaixo dos pés.

 Ora, o evangelho proclamado incide sobre tudo isso e muito mais.

 Os inimigos, aqueles que nos fazem mal, não podem ser eliminados. São seres humanos. O Pai os ama. O Pai faz chover e manda o sol sobre justos e injustos. Perdão? Que quer dizer? Que palavras encontrar para compreender essa proposta de Jesus? Não se trata de esquecer a ofensa, nem de desculpar a quem me ofende. O que está errado, está errado. A justiça sempre pede caminho. Trata-se de jogar a historia dos que nos fizeram mal nas mãos de Deus. Para tanto tal só será feito com uma graça de Deus. Quem puder compreender que compreenda.

 O que desejamos que os outros façam para nós, faremos para os outros. Cometemos falhas graves, roubamos, espancamos. Podemos ser roubados. Se tivermos cometido falhas graves para com o pai e a mãe, o amigo e o vizinho e tivermos arrependidos desejamos ser perdoados. Precisamos do perdão para sobreviver. Mesmo que estejamos encarcerados precisamos do perdão dos irmãos e de Deus. Temos o direito de negá-lo aos outros, nós que suplicamos o perdão?

 Melhor não ficarmos fazendo muito discurso sobre o perdão. Deletar a culpa do outro? Parece normal. Justiça é justiça. Voltar a ter com ele relacionamento límpido e carinhoso? Será possível? Não é esta a utopia do cristianismo? Criar um mundo de fraternidade e de irmãos? Não é isso que as parábolas de Jesus insinuam e proclamam? Quem puder compreender que compreenda…

 Para aprofundar o assunto, algumas linhas de Francesco Torralba:

◊ O perdão é um meio de restaurarmos o que foi quebrado, mas só é possível quando nos arrependemos de verdade e estamos dispostos a uma reconciliação.

◊ O perdão é um processo pelo qual se repara um coração partido. Libertamos o coração da prisão do rancor e do ressentimento, recompomos nosso mundo interior maculado de vergonha e de culpa e o devolvemos a seu estado puro. Recuperamos a inocência de outros tempos quando éramos livres para amar.

◊ A reconstrução dos tecidos esgarçados depende do trabalho do perdão, mas esse exercício é sempre bilateral. Não pode ser realizado por uma única pessoa. Posso implorar o perdão e não ser perdoado. Posso oferecer o perdão ainda que o outro não o peça. Para que o perdão aconteça é necessário um movimento bilateral do agressor para com a vítima e desta em relação ao agressor.

◊ Amar desinteressadamente: “Se fazeis o bem aos que vos fazem o bem, que recompensa tereis?”. Jesus proclama a lei da generosidade, da gratuidade. Nada da política do dou e dês, do é dando que se recebe. O amor faz sempre o bem.

◊ Na arte da convivência deve falar outro principio enunciado do evangelho. Temos que ser bons como Deus é bom. “Deus é bondoso também para os ingratos e os maus. Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso”.


Texto para reflexão
Não há outra saída, senão o perdão

Ao abordar o tema do perdão, José Tolentino Mendonça conta histórias. Vamos a uma delas:

Esta é contada pelo escritor judeu, Prêmio Nobel da Paz, Elie Wiesel. Na infância esteve prisioneiro em Auschwitz, na companhia dos pais, irmãos, amigos. Praticamente só ele sobreviveu. Podemos sentir até que ponto se sentia espoliado. A partir de 1945 quando a guerra acaba, passa em que o único objetivo de vida era procurar uma impossível justiça para o irreparável. “Como foi possível tamanho horror?… Como foi possível!” E a sua vida era isso. Cada dia adormecia e acordava num inferno. Não conseguia encontrar a sua alma. Até que foi falar com um rabino. E o rabino disse-lhe: “Meu filho, enquanto tu não perdoares, continuarás prisioneiro em Auschwitz”. E essa palavra redimensionou o seu coração para sempre.

José Tolentino Mendonça, “Pai nosso que estais na terra”, Paulinas, p. 112


Oração
Prece encontrada nos escassos pertences de um prisioneiro num campo de concentração.

Senhor,
Quando vieres na tua glória, não te lembres
somente dos homens de boa vontade.
E no dia do Julgamento,
não te lembres apenas das crueldades e violências
que ele praticaram;
lembra-te também dos frutos que produzimos
por causa daquilo que eles nos fizeram.
Lembra-te da paciência, da coragem, da confraternização,
da humildade, da grandeza de alma,
da fidelidade que nossos carrascos
acabaram por despertar em cada um de nós.
Permite então, Senhor, que os frutos em nós despertados
possam servir também para salvar esses homens.

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FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

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                                                                                                           Fonte: franciscanos.org.br

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