A graça do batismo, a tradição e os
costumes clericais
Uma reflexão sobre as respostas do
Dicastério para a Doutrina da Fé com relação à celebração do batismo e às
pessoas transexuais e homossexuais.
São Cipriano, bispo de Cartago, que foi
martirizado em 258, participando de um sínodo de bispos africanos, observou: “A
nenhum homem que venha a existir pode ser negada a misericórdia e a graça de
Deus”. E Santo Agostinho escreveu: «As crianças são apresentadas para receber a
graça espiritual, não tanto por aqueles que as carregam nos braços (embora
também por eles, se forem bons fiéis), mas pela sociedade universal dos santos
e dos fiéis... É toda a Igreja Mãe dos santos que age, pois ela como um todo gera
cada um deles».
Essas são duas declarações dos Padres da
Igreja que atestam a absoluta gratuidade do batismo, de alguma forma também
relativizando o papel dos pais e padrinhos ("se forem bons fiéis")
que pedem o sacramento e apresentam a criança. Essas são palavras que melhor do
que outras iluminam a recente resposta do Dicastério para a Doutrina da Fé às
perguntas de um bispo brasileiro sobre o batismo. A nota assinada pelo cardeal
Victor Manuel Fernandéz e aprovada pelo Papa Francisco mostra uma clara harmonia
com o recente magistério papal. De fato, Francisco tem insistido repetidamente
que a porta dos sacramentos, e em particular a do batismo, não deve permanecer
fechada, e que a Igreja nunca deve se transformar em uma alfândega, mas sim
acolher e acompanhar todos em seus acidentados caminhos na vida.
Um documento do Dicastério para a Doutrina
da Fé, assinado pelo Prefeito Fernandéz e aprovado pelo Papa na audiência de 31
de outubro, expressa uma opinião positiva se não se cria ...
As respostas do dicastério doutrinário, no
contexto altamente polarizado que caracteriza a Igreja hoje, provocaram reações
opostas, incluindo aquelas que temem que, ao admitir ao sacramento do batismo
os filhos de casais homossexuais (adotados ou filhos de um dos dois parceiros,
talvez gerados por gestação artificial), tanto o chamado "casamento
gay" quanto a prática do chamado "útero de aluguel" se tornem
moralmente lícitos. Também pode ser lida nesse sentido, novamente pelos
críticos, a flexibilização da proibição de padrinhos e madrinhas de batismo,
que o Dicastério apresenta de forma problemática.
Em primeiro lugar, é interessante notar uma
passagem da nota, onde se recorda que as respostas publicadas nestes dias
"repropõem, em boa substância, os conteúdos fundamentais do que já foi
afirmado no passado sobre este assunto por este Dicastério". A menção se
refere a pronunciamentos anteriores que permaneceram em segredo (um dos quais
também é citado na nota de rodapé) que remontam a este pontificado e aos de
seus antecessores. Além disso, as citações iniciais dos dois Padres da Igreja
propostas no início deste artigo estão contidas, juntamente com muitas outras,
em um documento público da então Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé,
chefiada pelo cardeal croata Franjo Šeper e pelo arcebispo dominicano Jérôme
Hamer. Essa foi uma instrução aprovada em outubro de 1980 por São João Paulo
II, na qual ele respondeu a uma série de objeções contra a celebração do
batismo infantil, reafirmando a importância de uma "prática
imemorial" de origem apostólica que não deveria ser abandonada.
Para aqueles que hoje negariam o batismo
aos filhos de casais homossexuais porque, ao batizá-los, a Igreja tornaria
moralmente lícitas as uniões homossexuais ou a prática da barriga de aluguel, o
documento de 1980 já havia, de fato, respondido indiretamente, afirmando que
"a prática do batismo infantil é autenticamente evangélica, pois tem valor
de testemunho; manifesta a iniciativa de Deus em relação a nós e a gratuidade
de seu amor que envolve toda a nossa vida: 'Não fomos nós que amamos a Deus, mas
foi Ele que nos amou... Nós o amamos, porque ele nos amou primeiro' (1 João 4:
10. 19.)". E também "no caso dos adultos, as exigências de receber o
batismo não devem nos fazer esquecer que Deus 'não nos salvou por causa de
obras de justiça que tivéssemos praticado, mas unicamente em virtude de sua
misericórdia, mediante o batismo da regeneração e renovação, pelo Espírito
Santo,' (Tito 3, 5.)".
A instrução aprovada pelo Papa Wojtyla há
quarenta e três anos obviamente levou em conta a mudança do contexto social e a
secularização: "Pode acontecer que pais incrédulos e que praticam apenas
ocasionalmente, ou mesmo não cristãos, que por razões dignas de consideração
pedem o batismo para seus filhos, solicitem aos párocos". Como se deve
agir nesses casos? Permanecendo válido o critério - de ontem e de hoje - de que
o batismo de crianças é celebrado se houver o compromisso de educá-las de
maneira cristã, o documento de 1980 especificou a esse respeito: "Quanto
às promessas, qualquer compromisso que ofereça uma esperança bem fundamentada
para a educação cristã das crianças deve ser considerado suficiente". A
prática atual nas paróquias atesta o fato de que, seguindo o exemplo do
Nazareno, incansável em sua busca por cada ovelha perdida, é suficiente que um
parente se comprometa perante a Igreja a não fechar a porta.
Não seria necessário, hoje, acreditar mais
na ação da graça que atua por meio dos sacramentos, que não são um prêmio para
os perfeitos, mas um remédio para os pecadores? Não deveríamos olhar mais para
as páginas do Evangelho, de onde emerge Jesus, que ama primeiro, perdoa
primeiro, abraça primeiro com misericórdia, e é nesse abraço que o coração das
pessoas é movido para a conversão?
E, novamente, que culpa têm as crianças?
Seja como for que tenham vindo ao mundo, elas são sempre criaturas amadas e
queridas de Deus. Não valeria a pena, então, concentrar-se mais no lado
positivo, ou seja, no fato de que as pessoas pedem o batismo em um contexto
pós-cristão, onde é cada vez mais raro que isso aconteça por mero costume?
É confortante reler as palavras que um
grande bispo do século XX proferiu em uma entrevista em julho de 1978 sobre
Luise Brown, a primeira criança nascida em um tubo de ensaio. Ele denunciou o
risco de surgirem "fábricas de crianças" separadas do contexto
familiar e explicou que compartilhava "apenas em parte" o entusiasmo
pelo experimento. Mas, no final, ele ofereceu seus "mais calorosos votos à
criança" e um pensamento afetuoso aos pais, dizendo: "Não tenho o
direito de condená-los: subjetivamente, se eles agiram com intenção correta e
de boa fé, podem até ter grande mérito diante de Deus pelo que decidiram e
pediram aos médicos para realizar". Esse bispo se chamava Albino Luciani,
era o Patriarca de Veneza, um mês depois se tornaria João Paulo I e hoje é
beato.
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