e os primeiros escritores cristãos
Vital Corbellini - Bispo de Marabá (PA)
A Quaresma está em andamento bem como a
Campanha da Fraternidade 2023 sobre a fome. A quaresma nos prepara para o
mistério pascal da paixão, morte de ressurreição de Jesus e a Campanha
envolve-nos em políticas públicas para que a sociedade e a Igreja fiquem
sensibilizadas diante do flagelo da fome em vista de ações caritativas, boas em
favor das pessoas famintas em unidade com a prática de Jesus, pela compaixão e
pela ação. É preciso assumir a ordem de Jesus que é dar a comida aos que mais
precisam: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). É importante fazer uma
análise de alguns padres, primeiros escritores cristãos os quais comentaram a
respeito da fome que atingiam muitas pessoas das comunidades onde viviam os
ministros, as suas ações em favor dos pobres e dos necessitados.
A caridade dada aos pobres.
Tertuliano, Padre da Igreja nos séculos II
e III falou da ajuda que a comunidade prestava aos pobres e famintos. A
comunidade vivia a sua fé unida a uma prática de vida. Ela se reunia para
proclamar as leituras da Sagrada Escritura, seguidas das admoestações do
presidente da comunidade; após estas coisas havia o momento da entrega dos
bens, alimentos, que cada um trazia consigo. Tertuliano falava de uma caixa
comum na qual as pessoas depositavam as coisas e os coordenadores da
comunidade, bispos, sacerdotes e lideranças se responsabilizavam pelo destino
justo de tudo aquilo que era oferecido. O teólogo africano trouxe um dado muito
importante; a piedade, significando a moral e a fé, a prática de vida,
manifestadas em Cristo Jesus. Quando o teólogo africano falava destas coisas
ele tinha presente uma concepção teológica ligada à objetividade das coisas; o
amor ao necessitado e aos que passavam fome. Por isto ele dizia que a sua
comunidade de Cartago, as pessoas que traziam o dinheiro e alimentos à
celebração comunitária eram em vista da caridade ao próximo”[1].
Misericórdia e generosidade.
São Basílio de Cesaréia, bispo, do século
IV, dizia em suas regras pastorais, junto aos seus fiéis para serem
misericordiosos e generosos para com aqueles e aquelas que não tinham os meios
necessários para as suas vidas, porque muitas vezes os pobres eram colocados
sob acusação, ou seja, eram criticados pelas pessoas que tinham o poder
econômico ou político. Deste modo ele insistia para que qualquer coisa que
alguém tivesse a mais do necessário para viver, fosse dado a eles em
beneficência, segundo o preceito do Senhor, através da pregação do Precursor,
João Batista que exortava a todos aqueles que tivessem duas túnicas, doassem as
pessoas uma para quem não a tivesse e a quem possuísse comida fizesse o mesmo,
através da partilha com os mais necessitados (Lc 3,11). A palavra de Deus
também se concretizava pela exortação de São Paulo aos Coríntios que diz que
todas as coisas que a pessoa possui é dom de Deus (1 Cor 4,7)[2].
O trabalho dignifica o ser humano.
São Basílio também teve presente à
necessidade do trabalho para ganhar o pão de cada dia. Ele seguia São Paulo que
exortava a todos para o trabalho para assim a pessoa ir para frente e louvar a
Deus (2 Ts 3,10-12). Quem tem a possibilidade de trabalhar ajude as pessoas
mais necessitadas. No entanto quem não quisesse trabalhar não era julgado
merecedor de comer (2 Ts 3,10). Como São Paulo, o bispo afirmou que se deve
prestar socorro aos débeis e que há mais alegria em dar do quem em receber (At
20,35). São Paulo ainda disse que as pessoas deixassem de roubar e fizesse um
trabalho honesto com as suas mãos para ter coisas para serem dadas a quem está
na necessidade (Ef 4,28)[3]. O trabalho é fundamental diante da
problemática do desemprego, do pobre que passa por necessidades, de modo que se
ele tiver algum trabalho tem condições de trazer para a sua casa alimento para
os seus familiares.
Aquilo que vai além do necessário.
São Basílio dizia que deveria ter moderação
na mesa sem que não se ultrapassasse os confins do necessário. Este é o limite
a quem acolhe as pessoas que iriam às casas dos fiéis, sabendo que o abuso é o
gasto que vai além do necessário. Ainda que seja o alimento de um dia, no
entanto, se estiver bom é usado para as pessoas, mesmo àquelas que vêm de
longe. O alimento, como dom de Deus não pode ser desperdiçado pelo luxo, pois
ele sacia a fome dos famintos ou de pessoas necessitadas de alimento[4]. O fato é que quem aprecia o luxo não
vive bem porque faz desperdício de muitas coisas possibilitando o aumento das
injustiças no meio onde as pessoas vivem.
A fome, uma enfermidade espantosa
São Basílio ainda dizia que a fome é uma
enfermidade espantosa, pois representa a maior das desventuras humanas; é
aquela que possui o fim mais miserável de todas[5]. Ele também fez uma análise das mortes
que aconteciam na existência humana; aquelas que se sucediam com a espada em
caso de guerra; outras tinham como conseqüência a fé professada e, portanto
eram martirizados; outros morriam no fogo ou mesmo sofriam o naufrágio. Todas
estas formas de morte, ainda que indesejáveis à vida humana tivessem uma
característica própria: a sua rapidez. A fome, ao invés levava consigo uma
situação lenta, um sofrimento prolongado. São Basílio chamava-a de doença que se
instala no corpo humano de uma forma escondida, pois ela tem como fim uma morte
eminente e sempre em atraso. Ela vai consumindo a umidade natural, esfriando a
temperatura corpórea. Tudo isto leva à diminuição do peso da pessoa, e atenua
as suas forças de uma forma gradativa[6].
São Basílio não queria fazer uma poesia
sobre a fome, mas ele dava uma especificação a uma realidade que atingia a
muitas pessoas do mundo antigo e de suas comunidades cristãs. Ele dizia que o
ser humano vem desfigurado, sendo que a condição de quem sofre a fome é uma
negação da imagem de Deus (Gn 1,26), do qual o ser humano participa como dom e
como missão. A justificação é dada pelo fato que as características pessoais
são modificadas e com o tempo não são mais as mesmas; a pele perde o seu
colorido atraente e a cor rósea do sangue vai desaparecendo. A própria proteção
natural feita através da carne na pele e nos ossos diminui com o tempo por
causa da magreza; os joelhos não possuem mais a força que antes eram presentes
porque falta na pessoa faminta o sustento da comida; assim a voz torna-se
débil, fraca; os olhos inertes e fundos não manifestam uma vida saudável porque
com um estômago vazio, a pessoa necessitada não possui mais a gordura
necessária às vísceras. Assim ela reduz o ritmo dos seus passos para não gastar
mais forças e o seu sustento corporal è mantido em pé pelos ossos das costelas[7].
A doação aos pobres.
São Basílio também dizia que o pão que a
pessoa retinha pertence à pessoa faminta, o manto que a pessoa guarda no
armário é de quem de fato estaria nu; os sapatos que estão apodrecendo na casa
pertencem ao descalço; o dinheiro enterrado é do necessitado. Muitas coisas
poderiam ser feitas para socorrer a quem mais precisa, sobretudo os pobres e os
famintos[8]. Percebe-se então a convicção de Basílio
em relação à realidade da fome que era necessário realizar ações caritativas
para favorecer os pobres e aqueles que passam a situação da fome.
Esforço à prática do bem comum.
São João Crisóstomo, bispo dos séculos IV e
V exortava os seus fiéis ao esforço e a pratica do bem. O cristão olha o outro
com fé para dar-lhe uma ajuda quanto necessária às suas carências materiais. O
fato decisivo é que tanto a vida prometida como a punição serão eternas.
Enquanto a pessoa está no tempo, é chamada a realização de coisas portadoras da
verdadeira vida. O Bispo Crisóstomo fazia uma ligação da fome com o pão
espiritual, o pão do Senhor dado para todos. A eucaristia, o dom de Deus
descido do céu, possui como conseqüência “dar de comida ou bebida ou vestir
alguém”, porque o recebimento do Senhor no pão eucarístico impulsiona o cristão
para o outro, ao “necessitado”, e ver nele a presença de Cristo. São estas as
coisas dignas daquela mesa[9], na qual somos chamados a participar
ativamente com fé e com amor.
A prática da caridade.
Santo Agostinho, bispo de Hipona, séculos
IV e V falou da necessidade da realização da caridade. Esta não se faz só
através das palavras como diz João (1 Jo 3,8). Ele diz: “O teu irmão passa
fome, vive na necessidade; talvez aguarde com ansiedade a tua ajuda; Ele não
tem nada e você tem; é teu irmão: Você e ele foram redimidos juntos pelo sangue
de Cristo. Por isto tenhas misericórdia dele se possuis bens deste mundo” [10]. O bispo de Hipona insistia junto aos
seus fiéis pela ajuda dada, para que a palavra de Jesus de dar de comer aos que
tem fome fosse assumida na prática (Mt 14,16). A pessoa seguidora de Jesus não
levaria só o nome como um orgulho pessoal, mas o demonstra pelos fatos isto é
pela caridade fraterna sobretudo aos que sofrem fome. Jesus teve compaixão da
multidão faminta de modo que ele fez o milagre da multiplicação dos pães e ele
nos ensina a agir diante da realidade das pessoas que passam pelo flagelo da
fome com misericórdia e com ações caritativas.
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[1] Cfr. Tertuliano. Apologético, 39,
7. Tradução: Luis Carlos Lima Carpinetti. São Paulo, Paulus, 2021, pgs.
151-152.
[2] Cfr. Regole morali 48, 1-2. In:
Basilio di Cesarea. La cura Del povero e l´onore della ricchezza. Testi
dalle regole e dalla omelie, a cura di Luigi Pizzolato. Milano, Paoline, 2013,
pg. 165.
[3] Cfr. Idem, 48, 7, pg.
171-173.
[4] Cfr. Idem, 20,3, pg. 193.
[5] Cfr. Omelia in tempo di fame, PG
31,322s. In: Giordano Frosini. Il pensiero sociale dei Padri.
Brescia, Queriniana, 1996, pg. 35.
[6] Cfr. Idem, pg. 35
[7] Cfr. Idem, pgs. 35-36.
[8] Cfr. Homilia do Evangelho
segundo Lucas, 12,7. In: Basílio de Cesaréia. São Paulo, Paulus, 1998, pg. 36.
[9] Cfr. São João Crisóstomo. Comentários
às Cartas de São Paulo/2. Homilias sobre a Primeira Carta aos Coríntios,
27,27. São Paulo, Paulus, 2010, pgs. 387-391.
[10] Cfr. In Epistolam ad Partos
Tratactus, 24, (PL 35, 2018.). In: Opere di Sant’Agostino. Commento
al Vangelo di San Giovanni, Roma, Città Nuova e NBA,1968.
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