Meu Cristo partido
Durante meus
primeiros anos de seminário, “O Meu Cristo Partido”, do padre Ramón Cue, fazia
parte da meditação de todo seminarista para começar a entender a vida
espiritual. “O Meu Cristo Partido” é a história de um padre – a do próprio
autor – que compra uma imagem de Cristo extremamente mutilada: sem rosto, sem
um braço, sem uma perna, e sem cruz. Quando ele quis restaurá-la, o próprio
Cristo se opôs, radicalmente, pois é assim, segundo ele mesmo, partido e
mutilado, que ele se identifica com os que sofrem.
O trecho mais
conhecido da obra é esse.
“Vou mostrar-vos o
meu Cristo. Não é verdade que é muito belo? Mas, claro, falta-lhe o braço
direito, o esquerdo está mal seguro no ombro e a mão partida por ter sido
arrancada violentamente do cravo. Também lhe falta a perna direita,
cortada por meio da coxa. Conserva a esquerda, mas colada à pressa e sem
cuidado. E, além do mais, está sem cara. Partiram-lhe, totalmente. Cristo sem
rosto. Cristo anônimo. Cristo fantasma. É, porém, muito belo, não é? Ainda que
muito triste.
– Não me
restaures.
– Por que não
queres que te restaure? Não compreendes, Senhor, que será para mim uma
constante dor ver-te partido e mutilado, cada vez que te olhar? Não compreendes
que sinto dó?
– É isso que
quero: que vendo-me partido, te lembres de tantos irmãos que convivem contigo,
ignorados e distantes, e que estão, como Eu, partidos, esmagados, indigentes,
oprimidos, doentes, mutilados… Sem braços, porque não têm possibilidades nem
meios de trabalho; sem pés, porque lhes bloquearam os caminhos e não podem dar
um passo em frente na vida; sem cara, porque lhes roubaram a honra, o mérito, o
prestígio. Todos os esquecem e voltam-lhes as costas… não me restaures! Talvez,
vendo-me assim, te sirva de lição para entender a dor dos demais”.
Dom José Francisco Rezende Dias |
O Cristo Partido é
a imagem perfeita do ser humano, da sociedade e da Igreja, dilacerados por
interesses que já nem convém enumerar. Cada um sabe bem a dor do dilaceramento
a que foi exposto, nas comunidades, famílias, trabalho, amores, enfim, na
realidade da vida que sempre insiste em ser cruel, porque, muitas vezes, não
sabe ser de outra forma.
Na comunidade
cristã, esse dilaceramento acontece, invariavelmente, dentro de grupos movidos
por interesses que lhes são próprios, pessoais, singulares, demasiadamente,
individuais. “A minha paróquia”, “o meu padre”, “o meu santo de devoção”, “o
meu Jesus”, o meu… o meu… o meu…
Algum dia, isso
tudo será “nosso”?
Essas patologias
espirituais já aconteciam nas comunidades cristãs primitivas.
“Meus irmãos, fui
informado por alguns da casa de Cloé, de que há divisões entre vocês. Com isso
quero dizer que alguns de vocês afirmam: “Eu sou de Paulo”; ou “Eu sou de
Apolo”; ou “Eu sou de Cefas”; ou ainda “Eu sou de Cristo”. (1ª Coríntios
1,11-12).
(Eu sou de Paulo,
eu de Pedro… E você, de quem você é?)
Quanto mais
descobrimos sobre Paulo e os coríntios, mais entendemos a relevância da
mensagem para os nossos dias. Corinto era a principal cidade grega, a porta de
passagem entre o Ocidente e o Oriente. Importante cidade comercial, nela havia
tudo do melhor e do pior de uma cidade vibrante e movimentada. Seus cidadãos
cultivavam espiritualidade, ascetismo e aperfeiçoamento estético. Mas esse
crescimento não havia promovido o desenvolvimento ético. Um sincretismo
religioso de práticas judaicas, romanas e gregas tendiam a reduzir qualquer
valor a um resíduo de misturas forjadas. Quando tudo pode, nada vale muita
coisa, não é?
Paulo foi a
Corinto na segunda viagem, por volta de 51 DC, e ficou por lá 1 ano e meio,
mais tempo do que em outros lugares (At 18,11). A eloquência de Apolo, que
havia pregado em Corinto, contrastava com o jeito de Paulo pregar: Paulo não
era bom de fala. Moisés também não era! E Corinto era boa no pendor de
dividir-se internamente.
Penso muito em
como é impressionante a vocação das comunidades cristãs para se dividirem! Nem
falo das quebras externas, que geraram a quantidade de igrejas-irmãs separadas,
às vezes, mais separadas do que irmãs, mas das quebras internas, entre grupos e
pastorais.
Isso jamais
deveria acontecer! Esse é o nosso ponto fraco, o nosso escândalo em não
testemunhar a unidade de Cristo. É assim, aliás, que evidenciamos um sintoma de
infantilidade pessoal e comunitária.
“Dei a vocês
leite, e não alimento sólido, pois vocês ainda não estavam em condições de
recebê-lo, e nem agora estão, porque ainda são guiados pelo instinto. Porque,
se há inveja e discórdia entre vocês, não estariam vocês sendo carnais e agindo
como mundanos?” (1ª Coríntios 3,2-3).
A pergunta é
forte, e Paulo pega pesado, por duas razões: primeiro, porque não era do
costume dele pegar leve – quem não quisesse tinha toda liberdade de ir embora.
Segundo, porque à medida que o tempo passava, a ideia de Cristo edificar a sua
Igreja ficava cada vez mais longe, e não por causa das grandes perseguições,
mas por conta das pequenas manias de cada um. O que divide uma igreja não são
as doutrinas, mas as personalidades, as pequenas invejas, as pequenas bobagens.
“Visto que
há inveja e discórdia entre vocês…”
A palavra “inveja”
significa ver ao inverso. O invejoso não quer o que o outro tem, mas quer que
ele não tenha; se possível, quer destruir o que ele tem. Trata-se um “egoísmo
máximo”, um desejo violento em promover suas próprias ideias, excluindo
qualquer possibilidade de aceitar o que seja do outro.
A palavra
“divisão” lembra um tecido rasgado, deixado em fiapos. A túnica inconsútil de
Cristo (João 19,23) – imagem perene da unidade da Igreja – que sequer os
soldados rasgaram, termina em pedaços. E essa é uma das nossas mais tristes
realidades.
Esta era a
situação da Igreja em Corinto, uma igreja dividida e rasgada em partidos.
Normalmente, esse desastre começa, ou com pessoas que se acham “altamente
espirituais”, ou com pessoas que são “altamente ofendidas”.
Essas últimas, as
pessoas ofendidas, têm uma imensa capacidade de encontrar outras pessoas
ofendidas. Daí, quando elas se juntam, e decidem que vão promover seus próprios
pensamentos e convicções, acabam excluindo qualquer outro do seu caminho. Isso
não pode terminar em coisa boa e, geralmente, desenvolve a “discórdia”. Cada
grupo se transforma num partido político com sua própria plataforma e sua
própria agenda.
Irmãos, irmãs, a
Quaresma é a porta da Páscoa.
Se todas as nossas
pontas forem limadas, não machucaremos mais ninguém, e nos apresentaremos a
Cristo do jeito como ele nos sonhou: gente que ama e que perdoa, sete vezes,
setenta vezes sete vezes, ao infinito do amor e do perdão.
Conseguiremos?
Nós, não! Cristo
em nós, sim. Ele irá unir os nossos cacos para que não estejamos mais partidos,
mas inteiros, como ele nos quer.
Desejo a todos uma
Santa Quaresma: a Quaresma da união. Que, por nossa causa, jamais, o Cristo se
parta.
+ Dom José
Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
Arcebispo Metropolitano de Niterói
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Fonte: arqnit.org/ - A voz do Pastor - 1º de março de 2020
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