O Papa responde às Dubia de cinco cardeais
Os cardeais Brandmüller, Burke, Sandoval
Íñiguez, Sarah e Zen Ze-kiun apresentaram cinco perguntas ao Papa solicitando
esclarecimentos sobre algumas questões relacionadas à interpretação da
Revelação Divina, à bênção de uniões entre pessoas do mesmo sexo, à
sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja, à ordenação sacerdotal de
mulheres e ao arrependimento como condição necessária para a absolvição
sacramental.
O Papa Francisco respondeu a cinco Dubia
enviadas a ele em julho passado pelos cardeais Walter Brandmüller e Raymond Leo
Burke, com o apoio de três outros cardeais, Juan Sandoval Íñiguez, Robert Sarah
e Joseph Zen Ze-kiun. As perguntas dos purpurados, em italiano, e as respostas
do Papa, em espanhol, foram publicadas esta segunda-feira, 2 de outubro,
no site do Dicastério para a Doutrina da Fé. A seguir está o
texto com uma nossa tradução das respostas do Papa:
1) Dubium sobre a afirmação de que a
Revelação Divina deve ser reinterpretada de acordo com as mudanças culturais e
antropológicas em voga.
Após as afirmações de alguns bispos, que
não foram corrigidas nem retratadas, surge a questão de saber se a Revelação
Divina na Igreja deve ser reinterpretada de acordo com as mudanças culturais de
nosso tempo e de acordo com a nova visão antropológica que essas mudanças
promovem; ou se a Revelação Divina é vinculante para sempre, imutável e,
portanto, não pode ser contradita, de acordo com o que foi ditado pelo Concílio
Vaticano II, de que a Deus que revela é devida "a obediência da fé"
(Dei Verbum 5); de que o que é revelado para a salvação de todos deve
permanecer "para sempre intacto" e vivo, e ser "transmitido a
todas as gerações" (7) e de que o progresso da compreensão não implica
nenhuma mudança na verdade das coisas e das palavras, porque a fé foi
"transmitida de uma vez por todas" (8), e o Magistério não é superior
à palavra de Deus, mas ensina apenas o que foi transmitido (10).
Respostas do Papa Francisco
Caros irmãos,
embora nem sempre pareça prudente responder
diretamente às perguntas que me são dirigidas, e seria impossível responder a
todas elas, neste caso considerei oportuno fazê-lo, dada a proximidade do
Sínodo.
Resposta do Papa Francisco à primeira pergunta
a) A resposta depende do significado que
atribuem à palavra "reinterpretar". Se for entendida como
"interpretar melhor", a expressão é válida. Nesse sentido, o Concílio
Vaticano II afirmou que é necessário que, através do trabalho dos exegetas - e
eu acrescentaria, dos teólogos - "o juízo da Igreja amadureça"
(Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Dogmática Dei Verbum, 12).
b) Portanto, se é verdade que a Revelação
divina é imutável e sempre vinculante, a Igreja deve ser humilde e reconhecer
que nunca esgota sua insondável riqueza e precisa crescer em sua compreensão.
c) Consequentemente, também cresce em sua
compreensão do que ela mesma afirmou em seu Magistério.
d) As mudanças culturais e os novos
desafios da história não alteram a Revelação, mas podem nos estimular a
expressar melhor certos aspectos de sua riqueza transbordante que oferece
sempre mais.
e) É inevitável que isso possa levar a uma
melhor expressão de algumas afirmações passadas do Magistério, e isso de fato
aconteceu ao longo da história.
f) Por outro lado, é verdade que o
Magistério não é superior à Palavra de Deus, mas também é verdade que tanto os
textos da Escritura quanto os testemunhos da Tradição precisam de uma
interpretação que permita distinguir sua substância perene dos condicionamentos
culturais. Isso é evidente, por exemplo, em textos bíblicos (como Êxodo 21,
20-21) e em algumas intervenções magisteriais que toleravam a escravidão (cf.
Nicolau V, Bula Dum Diversas, 1452). Esse não é um argumento secundário, dada
sua íntima conexão com a verdade perene da dignidade inalienável da pessoa
humana. Esses textos precisam de uma interpretação. O mesmo se aplica a algumas
considerações do Novo Testamento sobre as mulheres (1 Coríntios 11, 3-10; 1
Timóteo 2, 11-14) e a outros textos da Escritura e testemunhos da Tradição que
não podem ser repetidos hoje assim como.
g) É importante enfatizar que o que não
pode mudar é o que foi revelado "para a salvação de todos" (Concílio
Ecumênico Vaticano II, Constituição Dogmática Dei Verbum, 7). Portanto, a
Igreja deve discernir constantemente o que é essencial para a salvação e o que
é secundário ou menos diretamente relacionado a esse objetivo. Interessa-me
recordar o que São Tomás de Aquino afirmou: "quanto mais se vai aos particulares,
mais aumenta a indeterminação" (Summa Theologiae 1-1 1, q. 94, art. 4).
h) Por fim, uma única formulação de uma
verdade nunca pode ser compreendida adequadamente se for apresentada
isoladamente, isolada do contexto rico e harmonioso de toda a Revelação. A
"hierarquia das verdades" também implica colocar cada verdade em
conexão adequada com verdades mais centrais e com o ensino da Igreja como um
todo. Isso pode levar a diferentes maneiras de expor a mesma doutrina, mesmo
que "para aqueles que sonham com uma doutrina monolítica defendida por
todos sem nuances, isso pode parecer uma dispersão imperfeita. Mas a realidade
é que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diferentes
aspectos da inesgotável riqueza do Evangelho (Evangelii gaudium, 40). Toda
corrente teológica tem seus riscos, mas também suas oportunidades.
2) Dubium sobre a afirmação de que a
prática difusa de abençoar uniões do mesmo sexo está de acordo com a Revelação
e o Magistério (CCC 2357).
De acordo com a Revelação Divina, atestada
na Sagrada Escritura, que a Igreja, "por mandato divino e com a
assistência do Espírito Santo, piedosamente escuta, santamente conserva e
fielmente expõe" (Dei Verbum IO): "No princípio" Deus criou o
homem à sua imagem, macho e fêmea os criou e os abençoou, para que fossem
fecundos (cf. Gn 1, 27-28), pelo que o Apóstolo Paulo ensina que negar a
diferença sexual é a consequência de negar o Criador (Rm 1, 24-32).
Pergunta-se: pode a Igreja derrogar esse "princípio", considerando-o,
em contraste com o que ensina a Veritatis splendor 103, como um mero ideal, e
aceitando como "bem possível" situações objetivamente pecaminosas,
como as uniões entre pessoas do mesmo sexo, sem deixar de respeitar a doutrina
revelada?
Resposta do Papa Francisco à segunda pergunta
a) A Igreja tem uma concepção muito clara
do matrimônio: uma união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma
mulher, naturalmente aberta a gerar filhos.
Somente essa união pode ser chamada de
"matrimônio". Outras formas de união o realizam apenas "de
maneira parcial e analógica" (Amoris laetitia 292), portanto não podem ser
chamadas estritamente de "matrimônio".
b) Não se trata apenas de uma questão de
nomes, mas a realidade que chamamos de matrimônio tem uma constituição
essencial única que requer um nome exclusivo, não aplicável a outras
realidades. É, sem dúvida, muito mais do que um mero "ideal".
c) Por essa razão, a Igreja evita qualquer
tipo de rito ou sacramental que possa contradizer essa convicção e levar a
entender que se reconheça como matrimônio algo que não o é.
d) Todavia, em nosso relacionamento com as
pessoas, não devemos perder a caridade pastoral, que deve permear todas as
nossas decisões e atitudes. A defesa da verdade objetiva não é a única
expressão dessa caridade, que também é composta de gentileza, paciência,
compreensão, ternura e encorajamento. Portanto, não podemos ser juízes que
apenas negam, rejeitam, excluem.
e) Portanto, a prudência pastoral deve
discernir adequadamente se existem formas de bênção, solicitadas por uma ou
mais pessoas, que não transmitam um conceito errôneo de matrimônio. Pois,
quando se pede uma bênção, está se expressando um pedido de ajuda a Deus, uma
súplica para poder viver melhor, uma confiança em um Pai que pode nos ajudar a
viver melhor.
f) Por outro lado, embora existam situações
que, de um ponto de vista objetivo, não são moralmente aceitáveis, a mesma
caridade pastoral exige que não tratemos simplesmente como
"pecadores" outras pessoas cuja culpa ou responsabilidade pode ser
atenuada por vários fatores que influenciam a imputabilidade subjetiva (cf. São
João Paulo II, Reconciliatio et Paenitentia, 17).
g) As decisões que podem fazer parte da
prudência pastoral em determinadas circunstâncias não precisam necessariamente
se tornar uma norma. Ou seja, não é conveniente que uma Diocese, uma
Conferência Episcopal ou qualquer outra estrutura eclesial habilite constante e
oficialmente procedimentos ou ritos para todo tipo de questão, pois tudo
"que faz parte de um discernimento prático diante de uma situação
particular não pode ser elevado ao nível de norma", porque isso
"daria lugar a uma casuística insuportável" (Amoris laetitia 304). O
Direito Canônico não deve e não pode abranger tudo, nem as Conferências
Episcopais, com seus vários documentos e protocolos, devem pretender isso, uma
vez que a vida da Igreja flui por muitos canais além dos normativos.
3) Dubium acerca da afirmação de que a sinodalidade
é "dimensão constitutiva da Igreja" (Cost.Ap. Episcopalis Communio
6), de modo que a Igreja seria por sua natureza sinodal.
Já que o Sínodo dos bispos não representa o
colégio episcopal, mas é um mero órgão consultivo do Papa, enquanto os bispos,
como testemunhas da fé, não podem delegar sua confissão da verdade, se
questiona se a sinodalidade pode ser critério regulamentar supremo do governo
permanente da Igreja sem alterar o seu regime constitutivo desejado pelo seu
Fundador, para o qual a suprema e plena autoridade da Igreja é exercitada seja
pelo Papa, em virtude do seu cargo, seja pelo colégio dos bispos juntamente com
a sua cabeça, o Romano Pontífice (Lumen gentium 22).
Resposta do Papa Francisco à terceira
a) Não obstante reconheçam que a autoridade
suprema e plena da Igreja seja exercitada seja pelo Papa em virtude do seu
cargo, seja pelo colégio dos bispos com a sua cabeça o Romano Pontífice (Cfr.
Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição dogmática Lumen gentium, 22), com
essas mesmas perguntas os senhores manifestam a própria necessidade de
participar, de expressar livremente o seu parecer e de colaborar, pedindo assim
uma forma de "sinodalidade" no exercício do meu ministério.
b) A Igreja é um "mistério de comunhão
missionária", mas esta comunhão não é somente afetiva ou etérea, mas
implica necessariamente uma participação real: não só a hierarquia, mas todo o
Povo de Deus em modos diversos e em diferentes níveis pode fazer ouvir a
própria voz e sentir-se parte do caminho da Igreja. Neste sentido, podemos
dizer que a sinodalidade, como estilo e dinamismo, é uma dimensão essencial da
vida da Igreja. Sobre este ponto, disse coisas muitos belas são João Paulo II
na Novo millennio ineunte.
c) Outra coisa é sacralizar ou impor uma determinada
metodologia sinodal que agrada um grupo, transformá-la em norma e percurso
obrigatório para todos, porque isto levaria somente a “congelar” o caminho
sinodal, ignorando as diversas características das várias Igrejas particulares
e a variegada riqueza da Igreja universal.
4) Dubium acerca do apoio de pastores e
teólogos à teoria de que “a teologia da Igreja mudou” e que, portanto, a
ordenação sacerdotal pode ser conferida às mulheres.
Após as afirmações de alguns prelados, que
não foram nem corrigidas nem retratadas, segundo os quais com o Vaticano II
teria mudado a teologia da Igreja e o significado da Missa, se questiona se
ainda é válido o ditado do Concílio Vaticano II, de que "o sacerdócio
comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial diferem essencialmente e não apenas
em grau" (Lumen Gentium IO) e que os presbíteros, em virtude do
"sacro poder da ordem para oferecer o sacrifício e perdoar os
pecados" (Presbyterorum Ordinis 2), agem em nome e na pessoa de Cristo
mediador, por meio do qual tornou-se perfeito o sacrifício espiritual dos
fiéis. Questiona-se também se ainda é válido o ensinamento da carta apostólica
de são João Paulo II Ordinatio Sacerdotalis, que ensina como verdade a ser
considerada definitiva a impossibilidade de conferir a ordenação sacerdotal às
mulheres, de modo que este ensinamento não está mais sujeito a mudanças nem à
livre discussão dos pastores ou dos teólogos.
Resposta do Papa Francisco à quarta pergunta
a) "O sacerdócio comum dos fiéis e o
sacerdócio ministerial diferem essencialmente" (Concílio Ecumênico
Vaticano II, Constituição dogmática Lumen gentium, 10). Não é oportuno apoiar
uma diferença de grau que implique considerar o sacerdócio comum dos fiéis como
algo de "segunda categoria" ou de menor valor ("um grau
inferior"). Ambas as formas de sacerdócio se iluminam e se amparam
reciprocamente.
b) Quando são João Paulo II ensinou que é
preciso afirmar "de modo definitivo" a impossibilidade de conferir a
ordenação sacerdotal às mulheres de modo algum estava denigrando as mulheres e
conferindo um poder supremo aos homens. São João Paulo II afirmou também outras
coisas. Por exemplo, que quando falamos do poder sacerdotal “estamos no âmbito
da função, não da dignidade e da santidade”. (são João Paulo II, Christifideles
laici, 51). São palavras que não colhemos suficientemente. Afirmou ainda
claramente que não obstante só o sacerdote presida à Eucaristia, as tarefas
"não dão justificação à superioridade de uns sobre os outros" (são
João Paulo II, Christifideles laici, nota 190; Cfr. Congregação para a Doutrina
da Fé, Declaração Inter Insigniores, VI). Afirmou também que se a função
sacerdotal é "hierárquica", não deve ser compreendida como uma forma
de domínio, mas “é totalmente ordenada à santidade dos membros de Cristo” (são
João Paulo II, Mulieris dignitatem, 27). Se isto não for compreendido e não
forem tiradas as consequências práticas dessas distinções, será difícil aceitar
que o sacerdócio seja reservado só aos homens e não poderemos reconhecer os
direitos das mulheres ou a necessidade de que elas participem, de vários modos,
na condução da Igreja.
c) De outro lado, para ser rigorosos,
reconheçamos que ainda não foi desenvolvida exaustivamente uma doutrina clara e
com autoridade sobre a natureza exata de uma "declaração definitiva".
Não é uma definição dogmática, e mesmo assim deve ser aceita por todos. Ninguém
pode contradizê-la publicamente e todavia pode ser objeto de estudo, como no
caso da validade das ordenações na Comunhão anglicana.
5) Dubium acerca da afirmação de que “o
perdão é um direito humano” e a insistência do Santo Padre sobre o dever de
absolver todos e sempre, para o qual o arrependimento não seria condição
necessária para a absolvição sacramental.
Questiona-se se ainda está em vigor o
ensinamento do Concílio de Trento, segundo o qual, para a validade da confissão
sacramental, é necessária a contrição do penitente, que consiste em detestar o
pecado cometido com o propósito de não pecar mais (Parágrafo XIV, Capítulo IV:
DH 1676), de modo que o sacerdote deve adiar a absolvição quando estiver claro
que esta condição não foi realizada.
Resposta do Papa Francisco à quinta
pergunta
a) O arrependimento é necessário para a
validade da absolvição sacramental e implica a intenção de não pecar. Mas
aqui não há matemática e devo recordar mais uma vez que o confessionário não é
uma alfândega. Não somos os donos, mas humildes administradores dos Sacramentos
que nutrem os fiéis, porque estes dons do Senhor, mais do que relíquias a
conservar, são auxílio do Espírito Santo para a vida das pessoas.
b) Existem muitas maneiras de expressar
arrependimento. Muitas vezes, nas pessoas que estão com a autoestima muito
ferida, declararem-se culpadas é uma tortura cruel, mas só o ato de se
aproximar da confissão é uma expressão simbólica de arrependimento e de busca
da ajuda divina.
c) Quero também recordar que “às vezes nos
custa muito dar espaço na pastoral ao amor incondicional de Deus" (Amoris
laetitia 311), mas se deve aprender. Seguindo são João Paulo II, defendo que
não devemos pedir aos fiéis propósitos de correção demasiados detalhados e
firmes, que no final acabam por ser abstratos ou até mesmo narcisistas, mas
inclusive a previsibilidade de uma nova queda "não prejudica a
autenticidade do propósito" (são João Paulo II, Carta ao Card. William W.
Baum e aos participantes do curso anual da Penitenciaria Apostólica, 22 de
março de 1996, 5).
d) Por fim, deve ser claro que todas as
condições que normalmente se colocam na confissão geralmente não são aplicáveis
quando a pessoa se encontra numa situação de agonia ou com as suas capacidades
mentais e psíquicas muito limitadas.
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